Um Mosaico Narrativo
Solo (2006), o romance talvez mais satírico de Juremir Machado da Silva, apresenta-se ao leitor como um mosaico narrativo
Solo (2006), o romance talvez mais satírico de Juremir Machado da Silva, apresenta-se ao leitor como um mosaico narrativo que visita várias questões contemporâneas que inquietam o escritor. É como se o livro contivesse dentro de si vários livros, é como se Juremir tivesse vários temas para tratar e não soubesse bem a qual se dedicar primeiro; para simplificar o trabalho, juntou tudo em Solo. No parágrafo que encerra o romance o autor dá as claras linhas do mosaico que acabou de compor: frutos da viagem ao Peru, residência em Paris, livros sobre a revolução da degola de 1893 e sobre o universo inca e sobre o nascedouro do cristianismo, referindo ao final quatro obras definidas como “decisivas” para a edificação da narrativa, esta um arranha-céus multicolorido. O mundo arcaico (incas, cristãos primitivos) e o mundo mais que moderno (o universo inculto da televisão e a juventude cheia de gírias que se repetem marteladamente) se cruzam ao longo de Solo sem marcações específicas, gerando o mais solto, o mais libertino dos romances de Juremir, um escritor sem amarras, que escreve com o instinto de quem tem o gênio de seus meios de expressão (as palavras e as narrativas) –uma aproximação vesga que ouso fazer seriam os livros autobiográficos do norte-americano Henry Miller, outro mestre tão ríspido e criativo quanto Juremir, exemplos onde a criatividade gera uma rispidez que raspa e incomoda os ouvidos mais sensíveis.
Tendo iniciado na ficção com uma obra-prima que parecia tão longe do leitor comum, Cai a noite sobre Palomas (1995), Juremir passou a aproximar-se cada vez mais, e até onde é possível sem adulterar sua arte, dos ouvidos populares. A trilogia de novelas a que chamou Mitomanias (2003) e depois seu notável romance histórico Getúlio (2004) revelavam transparentemente esta preocupação do escritor com despir seu verbo dos volumes literários ou excessivamente metafóricos, em busca da compreensão de um maior número de leitores; Solo de certa maneira radicaliza esta tendência, onde Juremir despreza aqueles escrúpulos que geralmente se tem ao escrever, de impropriedade, repetição, lugares-comuns, executando muitas vezes uma exacerbação do lugar-comum de frase e narrativa, mais ou menos como o fazia, de maneira grandiosa, o romancista mineiro Autran Dourado; é claro, perto da modernidade de Solo um romance como A barca dos homens (1961), de Dourado, saudado como uma invenção de vozes narrativas, se torna tão cheio de pudores clássicos.
Solo é como se Juremir quisesse escrever sobre todas (ou quase) as experiências recentes de vida. A multiplicidade e o desarrumado destas experiências têm na figura do protagonista (que é quem narra a história) um esforço de unidade; mesmo assim, estamos diante dum romance difuso, tentacular, sem um ponto de apoio específico como geralmente têm as narrativas mais abotoadas. Brás Cubas dizia de suas memórias que era uma obra difusa, escrita com as tintas da galhofa. O protagonista de Solo poderia dizer o mesmo ao leitor perplexo com o circo disparatado que ele põe em cena. Qual a relação entre o universo místico-filosófico dos incas, os sonhos que evocam as degolas de 1893 e a rotina de um indivíduo brasileiro comum do princípio do século XXI vendo televisão, comendo mulheres e falando trivialidades com sua turma em gíria apropriada? Não tentemos achar estas relações, embora elas possam existir. O que interessa é a construção do mosaico, as relações formais não as relações temáticas. Subimos no Solo para experimentar esta vertigem dum afresco alucinado.
Brás Cubas escreveu como um galhofeiro. Em Solo esta galhofa algumas vezes radicaliza o grotesco. Lá pelo começo do livro a criatura tem um pesadelo: sonha que está transando com a Hebe Camargo num programa do Faustão, que olha tudo de maneira implacável e derrama seu vozeirão sarcástico no microfone. O Louro José, presente na cena, intervém: “Podia ser pior, podia ser a Dercy Gonçalves. Ou a Elsa Soares.” É um ponto alto do grotesco brasileiro contemporâneo na literatura. O mundo da televisão é um dos elementos-chave da trama de Solo; Juremir é um telemaníaco (sei que o neologismo é mal formado, mas creio que serve à idéia e pode ser compreendido no contexto), há dez anos ele escreveu um maravilhoso ensaio sobre a televisão (Anjos da perdição; 1996), nada mais natural que sua aguda inteligência utilize com extraordinário senso de ironia as questões da televisão em sua ficção.
A televisão é um filhote do cinema, um filhote com características tão específicas que chega a ser uma outra espécie. O cinema é outra sombra que paira sobre algumas passagens de Solo; em certas descrições o romance parece um fragmento de roteiro cinematográfico, detalhando tecnicamente a cena como se estivesse sendo filmado, como se se tratasse de um making off em palavras dum set de filmagem.
Com tantos elementos à disposição, Juremir Machado da Silva faz de Solo um outro triunfo de sua arte, que pode espantar inicialmente pelo desabusado de sua construção e verbo, mas nunca deixa de impressionar a quem o lê há tantos anos e a quem começar a descobrir agora o que ele pode fazer ao tentar aproximar-se mais do público.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br