O Senso da Linguagem Como Elemento Narrativo
Um exemplo de narracao baseada em refinamentos verbais, quase inabituais na atual literatura brasileira
Corisco Moura, em Dois levados numa jangada (2022), seu segundo livro, segue o caminho de depuração do que ele exercitara em sua estreia como ficcionista, A última aldeia (2017): o senso da linguagem como elemento narrativo. A busca de Corisco é um árduo embate entre a imaturidade e a agudeza no interior da linguagem. Em sua nova aproximação à literatura narrativa, a harmonia estética vai ajeitando as peças: um narrador onisciente sofisticado, imaginoso e metafórico, contracena com trechos de oralidade das personagens comuns de que basicamente é feita a trama do romance.
Um exemplo de narração baseada em refinamentos verbais, quase inabituais na atual literatura brasileira. “Acabava o dia. Um fogo vermelho repousava sobre os telhados, agora negros, dos sobrados voltados para o ocidente. Pássaros dependurados lançavam-se no espaço, deixavam-se ficar e, depois, mergulhavam na baía. Os matizes das casas, as águas do mar, tudo perdia cor, irmanando-se na sombra. Tanto no território urbano quanto na baía, a visão se assemelhava. Acontecia na Cidade da Bahia de Todos os Santos, terra onde se misturavam raízes e credos, linhas a desenhar, no século XIX, uma confusa colcha de antagonismo.” Sim: o foco central da história montada pelo romancista são os antagonismos que se embatem na sociedade brasileira, aliás o principal deles segundo o sociólogo Gilberto Freyre, entre a senzala e a casa-grande, entre brancos e pretos, entre os senhores e os escravos. Moura vai à Bahia da primeira metade do século XIX e visita os seres que então habitavam a terra. Estas criaturas têm a sua própria linguagem, que não é a do narrador; o autor sabe resgatar estas falas sem descontinuar o ritmo narrativo, o que certamente exigiu estudo, treino e amadurecimento do processo ficcional. Veja o leitor:
“—Tô cansado! O sermão faz pensar... Feliz d’ocê. Não vive na senzala! Desapareço na madrugada. Carcos calcanhar no sertão. Levo moringa e mais nada. Tenho compadres, cê sabe. Me viro. Numa semana, corro pro quilombro."
O coração histórico de Dois levados numa jangada debruça-se na relação dum casal que traz em si a marca destes antagonismos brasileiros. O branco Joshua e a negra Tereza se juntam para provocar na trajetória das páginas do livro. “Não que tipos estranhos fossem raros na Cidade da Bahia.” Com constante exasperação e tensão linguísticas, o romance pinta em contraponto a revolta dos malês na Bahia de 1835 e este contraponto histórico incendeia as relações nascentes entre o inglês Joshua e a brasileira negra Tereza. Depois de ter situado sua ficção inicial no Rio Grande do Norte (A última aldeia), Moura desce rumo de Salvador à procura de certas origens nacionais que, como anota o narrador lá pelo fim, explicam os “ainda miseráveis, órfãos de pai e mãe, vitimados pelo preconceito e pela indiferença da sociedade”. Na imagem final do livro, podemos observar o olhar da personagem de Tereza para nosso presente, o presente em que está o leitor (“Tereza desconhecia o futuro”), e nos confundimos com este olhar de personagem que um pouco nos espia, e, acoplados ao olhar de Tereza, o leitor parece sentir o balanço da jangada em que águas afora dois são levados. “À medida que pensava, a jangada adiantava-se, vencendo ondas e distâncias, chegando enfim perto do brigue.” O porto deste romance de Corisco Moura, porto figurado na travessia da jangada que fecha a narrativa, é o presente em que estamos os que vamos a ler: os antagonismos ainda não tiveram solução, estas oposições (antropológicas?) estão quase no ponto de partida. Por isso nosso olhar se permuta com o Tereza.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br