O Senso da Linguagem Como Elemento Narrativo

Um exemplo de narracao baseada em refinamentos verbais, quase inabituais na atual literatura brasileira

15/07/2022 14:50 Por Eron Duarte Fagundes
O Senso da Linguagem Como Elemento Narrativo

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Corisco Moura, em Dois levados numa jangada (2022), seu segundo livro, segue o caminho de depuração do que ele exercitara em sua estreia como ficcionista, A última aldeia (2017): o senso da linguagem como elemento narrativo. A busca de Corisco é um árduo embate entre a imaturidade e a agudeza no interior da linguagem. Em sua nova aproximação à literatura narrativa, a harmonia estética vai ajeitando as peças: um narrador onisciente sofisticado, imaginoso e metafórico, contracena com trechos de oralidade das personagens comuns de que basicamente é feita a trama do romance.

Um exemplo de narração baseada em refinamentos verbais, quase inabituais na atual literatura brasileira. “Acabava o dia. Um fogo vermelho repousava sobre os telhados, agora negros, dos sobrados voltados para o ocidente. Pássaros dependurados lançavam-se no espaço, deixavam-se ficar e, depois, mergulhavam na baía. Os matizes das casas, as águas do mar, tudo perdia cor, irmanando-se na sombra. Tanto no território urbano quanto na baía, a visão se assemelhava. Acontecia na Cidade da Bahia de Todos os Santos, terra onde se misturavam raízes e credos, linhas a desenhar, no século XIX, uma confusa colcha de antagonismo.” Sim: o foco central da história montada pelo romancista são os antagonismos que se embatem na sociedade brasileira, aliás o principal deles segundo o sociólogo Gilberto Freyre, entre a senzala e a casa-grande, entre brancos e pretos, entre os senhores e os escravos. Moura vai à Bahia da primeira metade do século XIX e visita os seres que então habitavam a terra. Estas criaturas têm a sua própria linguagem, que não é a do narrador; o autor sabe resgatar estas falas sem descontinuar o ritmo narrativo, o que certamente exigiu estudo, treino e amadurecimento do processo ficcional. Veja o leitor:

“—Tô cansado! O sermão faz pensar... Feliz d’ocê. Não vive na senzala! Desapareço na madrugada. Carcos calcanhar no sertão. Levo moringa e mais nada. Tenho compadres, cê sabe. Me viro. Numa semana, corro pro quilombro."

O coração histórico de Dois levados numa jangada debruça-se na relação dum casal que traz em si a marca destes antagonismos brasileiros. O branco Joshua e a negra Tereza se juntam para provocar na trajetória das páginas do livro. “Não que tipos estranhos fossem raros na Cidade da Bahia.” Com constante exasperação e tensão linguísticas, o romance pinta em contraponto a revolta dos malês na Bahia de 1835 e este contraponto histórico incendeia as relações nascentes entre o inglês Joshua e a brasileira negra Tereza. Depois de ter situado sua ficção inicial no Rio Grande do Norte (A última aldeia), Moura desce rumo de Salvador à procura de certas origens nacionais que, como anota o narrador lá pelo fim, explicam os “ainda miseráveis, órfãos de pai e mãe, vitimados pelo preconceito e pela indiferença da sociedade”. Na imagem final do livro, podemos observar o olhar da personagem de Tereza para nosso presente, o presente em que está o leitor (“Tereza desconhecia o futuro”), e nos confundimos com este olhar de personagem que um pouco nos espia, e, acoplados ao olhar de Tereza, o leitor parece sentir o balanço da jangada em que águas afora dois são levados. “À medida que pensava, a jangada adiantava-se, vencendo ondas e distâncias, chegando enfim perto do brigue.” O porto deste romance de Corisco Moura, porto figurado na travessia da jangada que fecha a narrativa, é o presente em que estamos os que vamos a ler: os antagonismos ainda não tiveram solução, estas oposições (antropológicas?) estão quase no ponto de partida. Por isso nosso olhar se permuta com o Tereza.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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