Na Contraluz de Bazin

Dias de Ira (Vredens dag; 1943) é um exemplo de abstinência cinematográfica que perturba

17/06/2016 23:16 Por Eron Duarte Fagundes
Na Contraluz de Bazin

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Dias de ira (Vredens dag; 1943) é um exemplo de abstinência cinematográfica que perturba. O realizador dinamarquês Carl Theodor Dreyer faz um cinema que se ausenta, um cinema que jejua, um cinema de penitência: é um retorno ao primitivo, aos planos cinematográficos iniciais da história, no que Dreyer antecipa o francês Robert Bresson na utilização da escassez de cenários e sua valorização de certos recursos desdramáticos dos intérpretes (a fala monocórdia, o olhar dramaturgicamente desajeitado que muitas vezes parece espiar o vazio – os efeitos desta maneira de interpretar são inesperados e subterraneamente hipnóticos). O crítico francês André Bazin escreveu, em 1947, um texto sobre o filme de Dreyer com anotações preciosas para ajudar a interpretar o universo do cineasta e que serve ainda para estabelecer as conexões da crítica com o cinema do dinamarquês; Bazin é claramente hesitante diante da maravilha que está vendo, alude à encenação pictórica (Rembrandt) de Dias de ira, mas reclama que Dreyer transformou o despojamento em pobreza, reprova as “curtas panorâmicas” com o “balanço nauseabundo” que substitui os campos e contracampos habituais, aduz a pouca emoção ou o tédio que emana da beleza plástica da narrativa, conclui referindo-se ao trabalho de Dreyer como “uma espécie de obra-prima a um tempo anacrônica e sem idade.”

Diante da visão hoje de Dias de ira, sabe-se que Bazin não estava preparado para uma obra tão avançada. Bazin escreve que a decupagem está mais na composição da imagem (o quadro) que na montagem. Na verdade, Dias de ira executa a montagem desde a composição da imagem, desde o ato de filmar; o sentido de montagem de Dreyer não é o de um Einsenstein ou o de um Orson Welles, mas se liga mais àquele de Dziga Vertov, é claro que sem o experimentalismo e com acréscimos espirituais. Tudo é montagem, e montagem rigorosa, nas imagens concebidas e criadas por Dreyer. Os recursos das pequenas panorâmicas, que tanto tiraram do sério a Bazin, vão gerar, em Dias de ira, uma unidade clássica de tempo e espaço cinematográficos de que só Dreyer foi capaz no cinema; seu classicismo é único e seu senso espacial e temporal, também, porque sua articulação destes breves movimentos de câmara que nausearam Bazin foi executada com um rigor exemplar, um acerto verdadeiramente matemático de execução.

Comecei falando da influência de Dreyer sobre Bresson: uma certa rudeza dos intérpretes para achar o veio espiritual, cenários ausentes. Dreyer é uma sombra maior ainda no cinema de outro nórdico, o sueco Ingmar Bergman, o parentesco se torna mais assustador. Se O vampiro (1932) teve uma seqüência premonitória de caixão refeita depois em Morangos silvestres (1958) e em Face a face (1976), Dias de ira, com sua característica extremamente sombria e seus delírios místico-fantásticos, atua sob o pano de O sétimo selo (1956); a constância exacerbada das vestes negras (contraponteadas por fugidios colarinhos brancos) é um dos dados lívidos de Dias de ira, e estas roupas pretas (contracenando com ambientes vermelhos) serão um dos grandes achados plásticos do cinema em Gritos e sussurros (1973). Daí se vê que as invenções de Dreyer, aparentemente tão pobres, tão jejuando, estabeleceram uma rica genética cinematográfica.

Pode-se dizer que em Dias de ira Dreyer utiliza a feitiçaria (sua história se passa no século XVII, época apropriada para que o espectador crie a ilusão de aceitação dos absurdos que regem o comportamento das personagens) para tratar do pecado e da culpa. A paixão proibida entre o filho dum pastor e sua jovem madrasta vai desencadear as fogueiras de punições; como um reflexo do que estaria por vir, no começo do filme uma velha vai ser perseguida e queimada como bruxa, é onde vislumbramos as ansiedades que nos provocam o corpo nu muito branco da velha Marthe Herloff, segundo François Truffaut (provocação, ironia ou estranha verdade?) o mais belo nu feminino do cinema, o nu menos erótico e o mais carnal; o corpo queimado desta velha antecipa a linha que assumirá o trágico amor proibido, cuja culpa explode na confissão final da jovem madrasta de seu amante diante do corpo de seu falecido marido (que ela teria matado só com o pensamento —questão de bruxaria, portanto de fogueira). A culpa em Dreyer não é a amedrontada culpa americana exposta por George Stevens em Um lugar ao sol (1951): a culpa em Dreyer é metafísica, religiosa, mística, uma verdadeira oração em imagens como fica evidente desde os letreiros iniciais que falam para o espectador correndo na tela como se fosse um evangelho.

Convém observar o tipo de realismo radical e rigoroso que Dreyer extrai de sua maneira de fazer cinema. A desglamurização e a singeleza com que o realizador desmancha, a partir dos intérpretes, a fantasia cinematográfica habitual põem em cena um universo estético e humano muito próprios: Dreyer é um esteta do humano. É bom salientar o quanto é original seu sistema fílmico, sua busca da verdade, confrontando com aquela impressão de realidade pretendida por uma grande produção industrial de nossos dias. Vamos a Vôo 93 (2006), rodado pelo inglês Peter Greengrass para americano ver; diz-se que Greengrass, com seus escrúpulos jornalísticos, buscou intérpretes entre pessoas que na vida real representassem os papéis que viveriam no cinema, comissárias, pilotos, controladores de vôo, lembrou-se até que um dos intérpretes estava fazendo o mesmo papel que fizera no dia do evento real de onde o filme tirara sua história; afirmava-se que a produção ganhava assim em veracidade; mas se a gente examinar bem, estes “intérpretes” americanos se comportam como uma estrela de Hollywood, talvez porque em suas próprias vidas sejam influenciados pela mídia avassaladora que é Hollywood ao longo das décadas; com Dreyer ocorre algo muito diferente, estamos diante de criaturas tão ignorantes da convenções dramatúrgicas que criam um outro espaço de realismo cinematográfico, equidistante da América bem como do francês Jean Renoir e das crônicas do italiano Roberto Rossellini.

Beleza plástica é o que não falta em Dias de ira, cujo despojamento foi confundido com pobreza por Bazin. Pincelo algumas seqüências. Um plano fixo em que o casal de enamorados conversa junto a uns arbustos; a cena exala algumas fumaças neblinosas que correm pela imagem, a fotografia de Karl Andersson é preciosa nesta captação, a grama parece tão sussurrante quanto os dizeres das personagens. Outra cena, esta no final. A panorâmica que irritava Bazin. Os garotos do coro da igreja (algo como os nossos coroinhas) estão andando, a câmara se desloca lentamente na mesma direção do caminhar da garotada, mas as pernas da câmara são mais lentas que as das pessoas, assim cada garoto vai saindo do quadro enquanto outros aparecem, então no final a câmara dá com o casal culpado, a estranheza de todo o movimento é sinuosa, a dialética dos movimentos externos e internos da cena perturba o olhar do assistente, o plano dos amantes fechando a seqüência é que aclara aquilo que ficara despercebido na ousadia formal de Dreyer. Ao contrário do que pareceu a Bazin, esta movimentação engenhosa me pareceu digna de um bom vinho em sua arquitetada tontura estilística, eu nunca usaria essa metáfora do nauseabundo porque estamos muito longe duma comida de porcos ao desfrutar da beleza destas imagens. É que vejo Dias de ira na contraluz do posto de observação de Bazin.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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