FHC em Outros Interesses
o Livro Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional é uma das melhores coisas deste olhar tão antigo e tão novo
No prefácio à 2ª edição de seu livro Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional (1962) o professor Fernando Henrique Cardoso observa: “Em regra, entretanto, prefiro deixar que os enganos de interpretação posteriormente descobertos continuem nas reedições para mostrar que na vida intelectual o percurso é tão importante quanto o resultado.” (Isto lembra as queixas que Autran Dourado fez das modificações que Cyro dos Anjos impôs ao longo das reedições para O amanuense Belmiro, 1937, exclamando que certas obras deveriam ser tombadas, para as proteger de seus autores; mais ou menos o que diz Cardoso dos erros iniciais descobertos em reedições da maturidade). Na própria vida do autor a questão se estabelece, matreiramente: qual foi o percurso de FHC? Sua dura vida de pesquisador do início dos anos 60 foi substituída por uma vida em busca dos confortos do poder nos anos 90 até hoje, pode-se dizer; sua possível tendência à esquerda dos anos de juventude deram lugar ao cinismo de centro-direita. Que teria determinado este percurso? Talvez um raciocínio mais ou menos inconsciente, mais ou menos consciente do indivíduo FHC: a vida de um professor, mesmo a de um professor universitário, é quase nada, aos olhos da maioria, diante da rutilância dum poderoso que chegou à Presidência da República. Ao que se sabe, José Ivo Sartori também deixou há muito tempo a cátedra, onde estava escondido, para seguir a perseguição ao poder, mesmo que, lá pelas tantas, no percurso, lhe coubesse governar uma província quebrada e decaída, pois mesmo isto é mais vantajoso.
Fiquemos, no entanto, com o percurso de FHC. E, dentro de seu percurso, o percurso de composição do seu ensaio Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional. Com o subtítulo “O negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul”, esta obra-tese é o resultado de uma investigação, a que se procedeu nos últimos cinco anos da década de 60, sobre a sociedade escravocrata nos três estados do sul do país, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, centrando-se um pouco mais neste derradeiro rincão, o dos gaúchos. Por ser paulista, talvez FHC teve mais audácia e prazer em mexer numa ferida gaúcha que nos esforçamos por ocultar ou ao menos encher de sombras: está por aqui o pior racismo brasileiro, e esta é uma verdade histórica e étnica demonstrada por agrupamentos de diversas imigrações entre nós mas historicamente ignorada, de maneira torpe, por muitos de nossos antigos analistas. É o que FHC decide comprovar com seu intenso trabalho, onde o campo (o percurso) foi tão importante quanto o texto a que se chegou (o resultado). Hoje é bem verdade que intelectuais acadêmicos como Juremir Machado da Silva, Vinicius Pereira de Oliveira e Jônatas Marques Caratti (todos gaúchos) desbravam, ao mesmo tempo com rigor e paixão, as inverdades entoadas em nossos hinos, oficiais ou populares. Quando FHC deu os passos de seu livro clássico, as coisas não eram fáceis. Como um leitor, mormente gaúcho, receberia esta assertiva, no comecinho da década de 60: “A reconstrução idílica da sociedade senhorial como democrática e sem preconceitos resulta na glorificação dos senhoresgaúchos.” E este “senhores” em negrito está no sentido de oposição ao escravo gaúcho: não é, pois, um pronome de tratamento, embora, por ironia, se possa abraçar esta ambiguidade.
Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional mostra também a deterioração do tipo de sociedade de servo (negro) e senhor (branco) pelas exigências do capitalismo nascente. Questões de custo de produção, produtividade e possibilidade comercial acabaram com a escravidão por aqui: o escravo foi aos poucos tornado um anacronismo em que o moderno era o assalariado. Assim, percebe-se que o fim da injustiça (neste caso, a privação da liberdade em função da cor) se deve não muito em função da revolta mas porque não mais funciona para a o opressor. Assim também o sistema capitalista que no Brasil sucedeu à escravidão tem suas crises não por má consciência mas porque atinge níveis de tensões sociais insuportáveis até mesmo para manter o que todo sistema sempre tende a manter, o bem-estar da elite.
Diante de tudo isto, e do que se vê até hoje, é aconselhável volver o olhar do pensamento para a conclusão de FHC: “As condições globais de formação da sociedade de classes e o sentido efetivo do processo de desagregação da ordem servil, já indicados, não propiciaram, contudo, que, nessa fase, os negros obtivessem sua inserção social na qualidade de iguais ao branco, tal qual, formalmente, passaram a ser depois da Abolição. O insucesso dessas tentativas evidencia, também, a precariedade da nova ordem democrática que se supôs implantada no país e a persistência de traços acentuados do ‘antigo regime’ na sociedade de classes que se formara.” FHC é um típico intelectual do século XX: transformou-se muito na idade madura e na velhice. Mas o resultado a que chegou sua vida não estorva a importância de seu olhar jovem para certas coisas fundamentais do país. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional é uma das melhores coisas deste olhar tão antigo e tão novo, tão objetivo e tão sincero nestes tempos em que antiguidade, novidade, objetividade e sinceridade perderam inteiramente o sentido nos atos das pessoas que habitam o Brasil nesta segunda década do século XXI.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br