Babenco - Perdemos um Grande Cineasta

É raro encontrar num cineasta uma obra tão digna, tão sem concessões, tão bem sucedida

17/07/2016 23:53 Por Rubens Ewald Filho
Babenco - Perdemos um Grande Cineasta

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Babenco - Perdemos um Grande Cineasta

Nenhum outro cineasta brasileiro de sua geração foi tão cultuado e premiado ou tem uma carreira tão consistente quanto Hector Babenco. Foi ele quem fez o primeiro e até agora único filme brasileiro que deu um Oscar de ator para seu protagonista, o americano William Hurt por O Beijo da Mulher Aranha. Foi o primeiro a proporcionar a uma brasileira o prêmio de melhor atriz pelos críticos de Nova York, Marilia Pera por Pixote. Para ver depois Pixote ser considerado um dos melhores filmes da década de 1980. Foi também o primeiro cineasta brasileiro a ir até Hollywood, dirigir um filme Classe A: Ironweed, que se deu ao luxo de dar indicações ao Oscar a seus protagonistas, duas lendas vivas, Meryl Streep e Jack Nicholson.

E podemos ir adiante: Babenco fez o melhor filme de prisão do cinema brasileiro, o grande sucesso Carandiru, o melhor filme já realizado sobre a Amazônia, Brincando nos Campos do Senhor e uma autobiografía subestimada, Coração Iluminado. E não para por ai: saibam que O Beijo da Mulher Aranha é hoje considerado um dos pioneiros do moderno cinema independente norte-americano, ainda que produzido e rodado no Brasil, com dinheiro brasileiro. Hector Babenco já fez de tudo no cinema, só não lhe peçam que faça um filme fácil, digestivo, que não lhe proponha desafios. Chegou mesmo a ser o único cineasta brasileiro a virar pôster da Mostra Internacional de São Paulo, até porque foi também o vencedor da primeira Mostra com outro filme seu antológico, Lucio Flavio, o Passageiro da Agonia, um dos primeiros a lutar e vencer contra as amarras da censura militar.

Como ninguém é perfeito, Babenco nasceu na Argentina, mas nunca jogou futebol, nem se interessa por Maradona. Era um adolescente inquieto e como contou em Coração Iluminado, revoltado com os sintomas de antisemitismo que via na sociedade portenha. Apaixonado por cinema, viajou para a Itália onde tentou a sorte na grande indústria italiana, trabalhando como figurante e na produção. Veio para o Brasil em 1969, se fixando em São Paulo, de onde nunca mais saiu. Começou fazendo documentários, fundou a H.B. Filmes e dirigiu curtas.

O então jovem Babenco que conduziu as entrevistas e assinou como produtor executivo o documentário O Fabuloso Fittipaldi de 1973 Mas a proposta era passar para o cinema de ficção e assim Babenco reuniu um grupo de amigos investidores para fazer seu primeiro longa, O Rei da Noite, de 1975, já reunindo dois grandes atores Paulo José e Marilia Pera, numa historia de boêmia e paixão, um meio termo entre o tango e o samba canção, que já dava sinais irrecusáveis de seu talento. Talento que iria explodir no filme seguinte, seu primeiro grande sucesso de critica e bilheteria, Lucio Flávio o Passageiro da Agonia de 1977, a história real de um bandido carioca que denunciou o Esquadrão da Morte, interpretado por Reginaldo Faria. Foi também o primeiro a contar os bastidores das prisões brasileiras e as organizações criminosas que agem nelas.

O êxito de Lucio Flavio lhe deu o fôlego para partir para uma empreitada ainda mais ousada e ambiciosa, fazer um filme sobre um problema crônica da sociedade brasileira, na verdade, de todo o mundo e que há muito anos não era abordado: a criminalidade infantil, as crianças que vivem nas ruas. Pixote é o apelido de um menino abandonado, que é levado para a Febem. Lá faz amigos e aprende ainda mais sobre o crime. Quando novamente solto, se envolve com traficantes e uma prostituta que lhe serve de mãe. Sucesso no Brasil, o filme a principio teve problemas para ser aceito no exterior. Mas acabou sendo descoberto pelos norte-americanos que o consagraram e o imitaram. Virou um clássico.

Esse êxito internacional levou Babenco a pensar numa coprodução para seu próximo projeto, a adaptação do livro O Beijo da Mulher Aranha, do argentino Manuel Puig, mesmo numa época onde ainda era raro e muito ousado se fazer um filme sobre um homossexual que seduz na prisão um guerrilheiro com historias de cinema. Um filme que ia ser feito com Burt Lancaster, mas acabou sendo rodado inteiramente no Brasil, com grana e equipe nossa. Os atores centrais porém vieram de fora, William Hurt e Raul Julia. E como a mulher aranha, a brasileira Sonia Braga, a Dona Flor, que a partir deste filme se lançou numa carreira internacional. Primeiro veio o premio de melhor ator em Cannes para William Hurt. Depois em 1986, o Beijo seria indicado aos Oscars de melhor roteiro, melhor filme, melhor diretor e ganharia o Oscar de melhor ator.

Depois do sucesso mundial de O Beijo, Babenco aceitou a proposta de ir rodar nos Estados Unidos, uma adaptação de um livro de William Kennedy, que leva o nome de uma flor, Ironweed. Mas bem ao gosto do diretor, era um drama muito sério, por vezes trágico, sobre um esquizofrênico alcoólatra que retorna para sua cidade natal e reencontra fantasmas vivos e mortos. Um filme sem pretensões comerciais que deu indicações para o Oscar para Jack Nicholson e Meryl Streep. Jack foi ainda melhor ator dos críticos de Nova York e Los Angeles.

Enquanto muitos se matam para filmar no luxo de Hollywood, Babenco optou como sempre pelo mais difícil. Seu próximo filme, Brincando nos Campos do Senhor, iria ser rodado na Amazônia, com um calor e umidade insuportáveis para os meros mortais. Era uma produção de Saul Zaentz, o mesmo de Amadeus e O Paciente Inglês e até agora o melhor filme já feito sobre as contradições da Amazônia, principalmente o papel que exercem os missionários evangélicos estrangeiros. Uma obra prima que foi rejeitada pelo conservadorismo americano e ainda esta para ser redescoberta. Apesar de trazer grandes interpretações de atores americanos com John Lithgow e Kathy Bates e os brasileiros Nelson Xavier, José Dumont, Stenio Garcia.

Babenco era e continua a ser um lutador e não se deixou vencer por um fracasso, nem por uma doença grave. Enfrentou e venceu os desafios. Era a hora de fazer uma reflexão sobre sua própria trajetória, era a hora de buscar suas raízes na Argentina realizando Coração Iluminado. Desde então Babenco, se alternou entre suas duas pátrias, no Brasil adotivo estourou com um grande painel da vida na prisão Carandiru, sobre o ponto de vista do médico Dr. Drausio Varela. Na Argentina, foi rodar uma adaptação de um livro de Alan Pauls, O Passado, um drama sobre amor e ciúme.

É raro encontrar num cineasta uma obra tão digna, tão sem concessões, tão bem sucedida. E de uma maneira até simbólica, Hector Babenco é o retrato desta mistura de muitas raças, cores e origens de que nós brasileiros temos tanto orgulho. Aproveitando sua herança judia, romena, portenha, paulistana, que ele conseguiu realizar uma obra que é a cara deste país, que é o retrato sem retoque desta ainda tão desacertada civilização tropical, do muito que já fizemos, do muito que ainda temos que mudar. Nós, brasileiros, reinvidicamos a obra e a carreira deste brasileiro de adoção, brasileiro de coração, brasileiro de corpo e alma.

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Sobre o Colunista:

Rubens Ewald Filho

Rubens Ewald Filho

Rubens Ewald Filho é jornalista formado pela Universidade Católica de Santos (UniSantos), além de ser o mais conhecido e um dos mais respeitados críticos de cinema brasileiro. Trabalhou nos maiores veículos comunicação do país, entre eles Rede Globo, SBT, Rede Record, TV Cultura, revista Veja e Folha de São Paulo, além de HBO, Telecine e TNT, onde comenta as entregas do Oscar (que comenta desde a década de 1980). Seus guias impressos anuais são tidos como a melhor referência em língua portuguesa sobre a sétima arte. Rubens já assistiu a mais de 30 mil filmes entre longas e curta-metragens e é sempre requisitado para falar dos indicados na época da premiação do Oscar. Ele conta ser um dos maiores fãs da atriz Debbie Reynolds, tendo uma coleção particular dos filmes em que ela participou. Fez participações em filmes brasileiros como ator e escreveu diversos roteiros para minisséries, incluindo as duas adaptações de “Éramos Seis” de Maria José Dupré. Ainda criança, começou a escrever em um caderno os filmes que via. Ali, colocava, além do título, nomes dos atores, diretor, diretor de fotografia, roteirista e outras informações. Rubens considera seu trabalho mais importante o “Dicionário de Cineastas”, editado pela primeira vez em 1977 e agora revisado e atualizado, continuando a ser o único de seu gênero no Brasil.

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