Violência e Paixão
O Movimento, de Benjamin Naîshat, é uma autêntica perfuração das entranhas do observador
O texto abaixo foi escrito às vésperas duma espécie de encerramento de atividades da Sala P.F. Gastal, em Porto Alegre; mas hoje, felizmente, ela está em plena atividade. Foi escrito também poucos meses depois do temporal que semidestruiu Porto Alegre no fim de janeiro de 2016.
No provável último dia da Sala Paulo Fontoura Gastal, situada à beira do Guaíba, no Gasômetro, em Porto Alegre, a exibição de um grande e opressivo filme argentino, O movimento (El movimiento; 2015), de Benjamin Naîshat. Deu-se na sessão matinal de sábado do Clube de Cinema de Porto Alegre. Depois da catástrofe natural que destruiu a embarcação Cisne Branco, no porto do Gasômetro, no fim de janeiro, e solapou a paisagem da orla, eis o tempo da catástrofe cultural, pondo abaixo uma sala de cinema cuja programação é a melhor da cidade; no fundo, ambas as catástrofes não são nada naturais e se devem aos desgovernos dos homens em sua relação com o planeta. O Gasômetro, provavelmente, nunca mais será o mesmo; lembrança particular: comecei trabalhando na CEEE, de onde saí no fim de março, em 1974 no pátio do Gasômetro onde a empresa funcionava, de frente para o rio. De fato: nunca mais será o mesmo...
O movimento lembra a atmosfera sombria e alegórica de O deserto dos tártaros, tanto o romance de 1940 do italiano Dino Buzzati quanto o filme de 1976 do também italiano Valerio Zurlini. Passa-se em tempos idos e imemoriais: um grão qualquer perdido no século retrasado. É uma época de desesperança. Esta desesperança é ainda mais tétrica que os signos e os símbolos expostos por Buzzati e Zurlini. Esta desesperança se origina do caos sócio-político do país naqueles anos. Emergindo do caos, a cabeça da serpente: um espírito autoritário vê a perspectiva de criar um movimento que, dominando as mentes sofridas da população pobre, venha a criar um sistema ditatorial que, como sempre, vai favorecer um grupo privilegiado. Atrozmente filmado, sem nenhuma espécie de concessão à respiração fácil do público, O movimento é uma autêntica perfuração das entranhas do observador. A violência do filme está também em sua paixão de filmar e, pode-se dizer, a paixão do filme nasce perigosamente da violência encenada; não há trégua para a acomodação de sentimentos, e a atualidade de O movimento, mesmo tratando de coisas aparentemente arcaicas, promana de funcionar como uma perturbadora nota de pé página nestes tempos que agudamente vivemos.
P.S.: É bastante grande o salto de criatividade de Benjamin Naîshat de seu filme anterior, Bem perto de Buenos Aires (2014), onde suas alegorias se entrechocavam confusamente, para a atmosfera erigida em O movimento. É como se um novo cineasta assomasse na tela.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br