As Lentes de Visconti

Aquela lente que abre Violencia e paixao poe o espectador diante do processo estetico de Visconti

09/10/2020 14:07 Por Eron Duarte Fagundes
As Lentes de Visconti

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Na primeira imagem de Violência e paixão (Gruppo di famiglia in un interno; 1974), o penúltimo filme dirigido pelo italiano Luchino Visconti (já bastante doente, numa cadeira de rodas), a câmara se detém (quase se acopla) numa lente de aumento que se põe sobre um quadro; o primeiro plano fixo da imagem da lente sobre a pintura se movimenta, o movimento de câmara descobre outros objetos de cenário, um apartamento da nobreza romana, e, após mover-se lateralmente em planos próximos sobre a parede onde há outros quadros, a câmara vem para trás, descortina a visão do que está no cenário do apartamento, e podemos dar com o homem que manejava a lente, um indivíduo de meia-idade a quem estão oferecendo a obra de arte, a lente servia-lhe para examinar detalhes da autenticidade da pintura. Um professor, um intelectual, um colecionador: ao longo da narrativa de Visconti ele é tudo isto, chamam-no professor (aposentado, já não deve dar aulas), o vemos lendo e cercado de livros, seu cenário estará ao longo de todo o filme atulhado de quadros, esculturas, poltronas refinadas, objetos raros à mesa de comer e beber. Aquela lente que abre Violência e paixão põe o espectador diante do processo estético de Visconti: ele usa suas lentes do cinema para estudar os quadros sociais que se apresentam.

Luchino Visconti é um esteta do barroquismo cinematográfico. Não é o barroquismo visual farsesco de Federico Fellini; ainda em toda a sua melancolia, Fellini articula sempre uma festa de imagens, melancolia e festa à deriva é o que vemos em A doce vida (1960). O barroquismo de Visconti é mais frio, mais intelectual, tem alguns pudores nobres que um Fellini, mais desbocadamente italiano, desdenha, mesmo em suas saídas mais elegantes. Talvez a cena mais característica do ponto de vista do pudor intelectual em Violência e paixão seja aquela em que o professor (interpretado por um magnífico e cortante Burt Lancaster), desperto no meio da noite, assiste, distanciado e constrangido, ao encontro orgíaco da família que ele, a contragosto inicial, acolheu em seu espaço; o professor é um pouco o próprio Visconti, um e outro têm sua nobreza tímida amalgamada com o mundanismo, mas a sequência de sexo e fumo entre Konrad, Stefano e Lietta, trocando corpos e sensações, é vista de frente pelo professor e pela câmara de Visconti. Os pudores aristocráticos aos poucos se esvaem: o cinema do refinamento aceita as manchas do mundo, precário, transitório, nada espiritual.

A trama de Visconti induz seus atores. Helmut Berger, o amante-fetiche de Visconti na vida do mestre italiano, interpreta o complexo e perturbador Konrad; Konrad é amante sustentado da veterana Bianca (Silvana Mangano traz uma interpretação italianíssima, nascida do neorrealismo, ao modo de Anna Magnani), enquanto a filha de Bianca, Lietta (Claudia Marsani), namora Stefano (Stefano Patrizzi), mas não deixa de jogar-se também para Konrad, a personagem que centraliza a promiscuidade desta nova classe que, saída da burguesia, vai contestar os burgueses em comportamento, moral, sexual, principalmente. No elenco, há rompantes de aparições meio fantasmagóricas de Claudia Cardinale, sempre um rosto expressivo no cinema. E também podemos topar a francesa Dominique Sanda, descoberta na década anterior por Robert Bresson.

Sabe-se que o cinema de Visconti tem sua feição teatral, especialmente nas características operísticas de encenação. E que, homem bastante culto, seu cinema tem informações literárias em sua estrutura. A sequência final em que a criatura de Lancaster descreve suas assombrações com os barulhos vindos dos inquilinos do andar de cima, barulhos no começo espaçados, depois cada vez mais constantes, une a imagem e o som dos ruídos àquilo que as palavras ditas por Burt revelam: imagem e verbo, cinema e literatura (auxiliados pelo teatro, encenação como cinema, palavra como literatura) se unem, produzindo o mais belo que se pode ver em Violência e paixão.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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