A Paixão do Texto
Há coisas que não morrem em mim, senão por algum acidente cerebral. A paixão do texto, por exemplo
Há coisas que não morrem em mim, senão por algum acidente cerebral. A paixão do texto, por exemplo: ler e escrever são para mim duas faces duma moeda única, em ambos os casos estou exercitando a escrita, a arte do liame entre as palavras, os jogos com as conjunções, as possibilidades sintáticas da língua a partir das preposições. A prosa do padre Antônio Vieira, talvez o maior orador sacro em língua portuguesa (há um outro, o português Manoel Bernardes, mas se nos dois a linguagem é maravilhosamente usada, em Vieira os circunlóquios de raciocínio são mais labirínticos), me foi apresentada quando eu tinha dezesseis anos de idade. Enfeiticei-me. Eu lia Vieira e outros debulhando alguns dicionários, o de Caldas Aulete (cinco volumes grossões) e o de Verbos e Regimes do mineiro Francisco Fernandes, este para saber que preposições cabiam a determinados verbos e com Vieira e outros autores montei meu próprio dicionário de regência na época. Uma loucura isto, aos dezesseis anos; ninguém me consultava nesta idade, pois não haveria quem, adulto, acreditasse num imberbe; depois, pela vida fora, nos meus trinta, quarenta ou cinquenta anos me foram perguntando sobre usos da linguagem, já me levavam um pouco mais a sério, afinal era um senhor, mas o que sei hoje sobre o assunto é o mesmo que eu sabia aos dezesseis anos: vira quase tudo em textos antigos como os de Vieira.
Tudo isto vem a pelo porque, na releitura dos sermões do mestre, concluí o segundo volume organizado por Alcir Pécora. Sermões de Antônio Vieira, tomo II. Vieira é acima de tudo um sintático do pensamento e da língua. Um trecho do “Sermão das exéquias”, em dolorosa memória do Infante de Portugal D. Duarte, caracteriza esta paixão de Vieira pela sintaxe; eu herdei dele esta paixão. “Senhor, livra a minha vida do temor de meu inimigo. Estas palavras podem ter dois sentidos, e ambos os explica Hugo Cabral. Ou pedir Davi a Deus que o livre do temor que ele tinha a seus inimigos; ou pedir que o livre do temor que seus inimigos lhe tinham a ele.” Vieira joga com as duas possibilidades da preposição “de” que aponta para a regência do substantivo “temor”. Temor do inimigo como o temor que pertence ao inimigo, o “de” caracterizando uma propriedade, o inimigo tem como seu este temor. Ou o temor do inimigo em que o “de” indica o objeto do temor, de onde vem o temor, sua origem: eu temo o inimigo. “Que o livre do seu poder, que o livre do seu valor, que o livre das suas traições, que o livre do seu ódio, sim; mas que o livre do seu medo, que o livre do seu temor.” O inimigo nos teme, nós tememos o inimigo: tudo numa simples preposição, como queria Vieira.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br