Proust Visto Por

Diversas visões sobre a obra de Michel Proust

27/04/2017 23:50 Por Eron Duarte Fagundes
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A Técnica da Crítica Literária em Álvaro Lins

O principal cérebro literário brasileiro do século XX é o pernambucano Álvaro Lins. Ele morreu há quase cinquenta anos e, não estando mais entre nós, ao contrário de seu contemporâneo Antônio Cândido (que se abeira dos cem anos de idade), e puxando para uma perspectiva analítica um tanto quanto rara de ver, não é hoje muito lembrado. Mas dificilmente a literatura crítica de nosso país poderá ter apresentado uma análise de romance tão aguda e variada quanto a de A técnica do romance em Marcel Proust (1951), onde o crítico Álvaro Lins se põe devidamente à altura do empreendimento ficcional de Marcel. Concebido inicialmente como uma tese acadêmica, o ensaio de Álvaro Lins se expande em linguagem e conceitos literários como raramente se tem a oportunidade de deparar em qualquer literatura.

Leitor atento (aos detalhes, inclusive) e apaixonado do romance de Proust, Álvaro se valeu não somente de suas observações de devorador de romances mas ainda das notas de outros e das correspondências de Proust que pudessem iluminar a monumental construção da obra-rio de Proust. Pesquisando, anotando, refletindo, o crítico chegou à mimese crítica perfeita de seu objeto: romance de Proust e texto de Álvaro se identificam organicamente, como uma coisa só e também como seres diferentes mas irmãos; enquanto lemos o ensaio, é como ver pelo espelho o romance; se voltamos ao romance, estimulados por um ou outro engenho da anotação do ensaio, é como puxar o romance para fora do espelho e dialogar diretamente com a imagem-romance dentro do ensaio. Ou algo parecido.

Se me perguntassem que obra (uma só!) poderia representar nossa literatura numa espécie de panteão universal das letras, eu não citaria nenhum romance, nenhum conto, nenhum poema. Eu me ajoelharia diante de A técnica do romance em Marcel Proust, o ensaio que eu gostaria de ter escrito. Segundo Álvaro, o romance de Proust “termina no momento mesmo em que se anuncia que vai ser começado”: como o próprio texto do ensaísta pernambucano, que é ao mesmo tempo o começo e o fim do pensamento literário brasileiro em sua essência. No entanto, existem outras maneiras de se ler Proust, como se verá a seguir: nenhuma delas tão bela e original. Escreve Álvaro no fim de sua exposição: “Marcel Proust criara um novo mundo, construíra um universo de imagens, como outros fundam impérios ou religiões.” O escritor nascido em Caruaru, à beira do agreste pernambucano, faz algo parecido: um universo, um mundo à parte.

 

Estranhas Misturas em Bottom

Alain de Bottom é um autor nascido na Suíça que faz literatura inglesa, pois ainda na infância foi morar na Inglaterra. É o típico intelectual pós-moderno, ou um tipo de pós-moderno, que se esforça por transformar altos conhecimentos estéticos em sucesso popular, o culto “pop”, superfícies brilhantes que se leem de um tapa com fascínio. Qual é a função, dentro da literatura e do comércio dos livros, de um ensaio tão sinuoso e matreiro como Como Proust pode mudar sua vida? (1997).

Começa por seu título. Propõe ler Proust como uma auto-ajuda. Ler para aprender. Ler para viver melhor. É claro que este lado de Bottom é seu lado comercial, vender seu peixe, senão quem hoje se interessaria por um estudo sobre o romancista francês Marcel Proust? O próprio livro de Proust, apesar dos esforços de Bottom, é para poucos; então, que dizer de um texto que versasse sobre o livro, ainda para mais poucos?

Todos os capítulos do livro de Bottom começam pela conjunção “como”, indicando um modo de agir, algo que direciona o leitor. É claro que, lado a lado com estas intenções forçadas do escritor inglês que nos fazem pensar em concessões para a vendagem da obra, Bottom é um leitor de mão-cheia, um observador das coisas da arte e da sociedade como poucos. Pena que não tenha preferido entregar-se ao ensaio puro, ou a um romance de ensaio agudo e sinuoso como Machado (2016), do brasileiro Silviano Santiago. Sobre Em busca do tempo perdido ele anotou: “A obra talvez fosse uma maneira de passar o tempo durante uma viagem em um trem lento pelas estepes siberianas, mas será que alguém poderia afirmar que seus benefícios se equiparam aos de um sistema de saneamento público eficaz?” De Bottom está aludindo ao desejo de Proust de fazer com seu livro o que seu pai, médico, fazia pelas pessoas utilizando as técnicas médicas. Mais adiante, outra nota: “O valor de um romance não se limita à representação de emoções e de pessoas parecidas com aquelas da nossa vida, mas também se estende à capacidade de descrevê-las muito melhor do que antes de identificar percepções que reconhecemos como nossas, embora não fôssemos capazes de formulá-las sozinhos.” No fundo, De Bottom fica no meio do caminho entre um intelectual proustiano e um diletante pop.

 

Proust, O Cronista da Nobreza Francesa

O francês Marcel Proust passou à posteridade por um único longuíssimo romance, Em busca do tempo perdido (1913-1922), em que capturava a memória social de sua época por uma técnica depuradíssima em que a criação duma atmosfera, por extensos períodos entrelaçados por uma sintaxe de buscas, indicava a criação de um mundo: um universo humano de palavras. Mas sabe-se que ele começou escrevendo crônicas para jornais: eram seus exercícios de estilo.

Salões de Paris (Chroniques; 2015) contempla a visão de Proust como um artista integral. São crônicas escritas entre o fim do século XIX e o começo do século XX; as primeiras crônicas são exercícios vagos em que o narrador simula a contemporaneidade de escritores que Proust não chegou a conhecer, como o poeta Alfred de Musset; depois há as crônicas contemporâneas da escrita do Tempo perdido e muitos trechos foram incorporados à estrutura do romance depois publicado, como se a crônica fosse escrita para o romance mesmo. Muitos escritores atuais fazem isto: certos trechos de suas publicações em jornais aparecem, ligeiramente modificados, em seus romances ou ensaios.

“Jantamos cedo. Não tanto, talvez, como à época em que Alfred de Musset, pela única vez em sua vida, veio jantar na casa da princesa. Esperamo-lo por uma hora. Quando chegou, estávamos na metade do jantar. Ele estava totalmente bêbado.”

“Um artista deve servir somente à verdade e não ter nenhum respeito pela posição social.”

 

O Amor No Tempo Narrativo: O Amor de Swann

Um amor de Swann (Un amour de Swann), um dos centros deste romance centrífugo que é Em busca do tempo perdido (À la recherche du temps perdu), do francês Marcel Proust, faz do amor uma personagem do tempo narrativo, este sim o verdadeiro escopo da aventura verbal deste romance-rio. Já não estamos diante da visão novecentista, psicológica, do sentimento amoroso, algo levado às consequências mais agudas, por gente como Stendhal, Balzac ou Flaubert. O amor na tempestade do tempo visto por Proust é uma outra coisa: uma sensação metafísica, muito particular. É o amor tocado pelo tempo. As idas e vindas entre o burguês Swann e a esquiva e maliciosa cortesã Odette percorre os salões nobres de Paris transformando o espaço de época em tempo narrativo; e esta transformação é tudo o que há de novo em Proust para adulterar, literariamente, as relações humanas, ainda que o romancista pretenda, meio às avessas, captar os movimentos da vida: à sua maneira, mudando seus pedaços de crônicas mundanas numa grande célere sinfonia.

Swann é um homem do mundo. Proust, preso em seu quarto, onde se masturba em sua literatura que os anos chamarão única, dá vida a este ser. “Swann, lui, ne cherchait pas à trouver jolies les femmes avec qui il passait son temps, mais à passer son temps avec les femmes qu’il avait d’abord trouvées jolies.” Uma definição ontológica de personagem: Swann não buscava considerar bonitas as mulheres com que passava seu tempo; ele primeiramente encontrava mulheres bonitas que mereciam dele passar o tempo. Na utilização dissonante do verbo “trouver” em dois momentos da frase, a seta no tempo.

O tempo mundano é convertido no tempo profundo de Proust. O amor, tão desgastado pelo romantismo, esgotado pelo realismo e neurotizado biologicamente pelo naturalismo (falamos de escolas literárias aqui), topa a veia original no começo do século XX em Proust. Nada de novo sob a aura temática: o segredo revolucionário está na composição, na forma. O ciúme de Swann e sua cegueira amorosa são expostos em longos parágrafos do tempo. “Un jour que des réflexions de ce genre le ramenaient encore au souvenir du temps où on lui avait parlé d’Odette comme d’une femme entretenue, et où une foi de plus il s’amuasit opposer cette personification étrange: la femme entretenue.” Um dia Swann foi levado outra vez (significa que isto lhe ocorreu outras vezes antes) a uma lembrança do tempo (uma recordação, um pedaço de memória) em que lhe falaram de Odette como duma “femme entretenue”, uma mulher manteúda, uma espécie de amante contratada, uma fêmea que vive às custas de homens, isto é, um caso sutil de amor vendido no tempo, e, uma vez mais (como das outras vezes, “encore”, “une foi de plus”), esta caracterização soou esquisita ao ouvido mnemônico do apaixonado Swann, subdividido em dois no tempo do amor.

Tudo se vai desenrolando com este amor metamorfoseado em tempo narrativo. Até aquela asperamente melancólica constatação final, que Swann exclama dentro de si mesmo: “Dire que j’ai gâché des années de ma vie, que j’ai voulu mourir, que j’ai eu mon plus grand amour, pour une femme qui ne me plaisait pas, qui n’était pas mon genre!” Desperdiçar anos, querer matar-se, dar seu grande amor, por uma mulher que não lhe agradava, que não era seu tipo! Eis aí o amor no centro do tempo: o tempo perdido. Esboçado em verbos como “desperdiçar” (gâcher) e “querer morrer” (vouloir mourir).

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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