Montando Meu Bresson

Como Dostoievski e Proust, Bresson eh um artista que cria um sistema estetico, unico na historia da arte

25/07/2023 17:14 Por Eron Duarte Fagundes
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A primeira vez que deparei um filme do francês Robert Bresson foi em junho de 1982; subi a rua da Ladeira, em Porto Alegre, comido e carcomido por minhas próprias angústias (morais, afetivas, intelectuais) daquela época, aos vinte e seis anos de idade, e aí o filme Uma mulher suave (Une femme douce; 1969) me invadiu o interior como poucos filmes já fizeram. Especialmente sua sequência de abertura nunca me esqueceu: a secura dos gestos da câmara-montagem de Bresson é algo de atordoante precisão; a súbita captação dos cenários, os gestos comuns das personagens, a cadeira de repente abandonada a embalançar-se sozinha, o vaso que cai duma mesa, o xale que esvoaça no vento junto à janela, o corpo duma mulher espatifado no chão, as sirenes.

Aí se cria um novo ritmo de cinema. Ao ler Notas sobre o cinematógrafo, uma coletânea de apontamentos de Bresson sobre seu próprio fazer cinematográfico, voltam-me aqueles anos e outros anos. Na aludida sequência inicial de Uma mulher suave a adequada concatenação de imagens e sons cria o ritmo; a aparição do som das sirenes cai na medida, não é fruto do acaso, é uma questão de tempo fílmico.

“Valor rítmico de um ruído.
Ruído da porta que se abre e se fecha, ruído de passos, etc., pela necessidade do ritmo.”

Bresson fez suas frases para si mesmo. Para ajudar a compor seus filmes. Elas na verdade só valem para seu próprio estilo de filmar. Fora de seus filmes, pareceriam dogmas demasiado autoritários, cerceadores. Para Bresson é a imposição de seus limites para criar. Diz-se que os dinamarqueses Lars Von Trier e seus companheiros do Dogma 95 se inspiraram na verdade fílmica de Bresson para estabelecer sua verdade, suas leis auto-impostas; a questão do modelo bressoniano no lugar do ator passa por esta influência de Bresson sobre a Dinamarca. Bernardo Bertolucci (Os sonhadores, 2003) e Jean-Luc Godard (Elogio ao amor, 2001) foram dois gênios do cinema que homenagearam nos anos 2000 o mestre francês, daí se tem a grandeza de sua obra; Bertolucci inseriu em seu filme planos do suicídio perau abaixo no final de Mouchette (1967), Godard mostra alguém lendo Notas sobre o cinematógrafo e mostra uma fila de pessoas diante dum cinema onde se exibe Pickcpocket (1958).

Bresson é um dos patrimônios maiores do cinema, que ele prefere chamar cinematógrafo para diferenciar do teatro filmado que havia muito em sua época. Em Bresson a busca do específico cinematográfico é uma constante; e ele, como o russo Eisenstein, se detém na montagem, mas de maneira diferente: as atrações de Eisenstein são substituídas por uma rigidez de formas que conduz à abstração. Curiosamente, mesmo que seja um obsessivo da imagem única (e pura) do cinema, chegou a ser acusado por alguns de cineasta literário. Por quê? Porque Bresson foge ao conceito do espetáculo costumeiro e se preocupa com coisas incomuns no cinema, como formas abstratas e inquietações espirituais, que muitos julgam ser privilégio da literatura, a arte por excelência maior e fora das massas. Esquecem que o cinema é “a escolha de pedaços” e nesta escolha Bresson é muito mais cinematográfico, com seu senso rítmico, que outros julgados cinema porque tratam o cinema como ação desenfreada.

Defensor dos planos fixos, como o japonês Yasujiro Ozu, Bresson tem por falsos os movimentos de câmara (travellings ou panorâmicas), dizendo que eles separam o olho do corpo, isto é, a câmara do cinema. “Não utilizar a câmara como uma vassoura”, exacerba ironicamente a metáfora bressoniana. Imobilidade: um dos eventos bressonianos; o olho está fixo para descobrir o movimento interior, invisível. Interioridade e meditação no silêncio quase sempre abdicando da música na faixa sonora (“Quantos filmes remendados pela música!”; um de seus discípulos mais nobres, Éric Rohmer fez deste postulado bressoniano uma constante em seus filmes), Bresson faz o silêncio gritar para dentro —interioridade, angústia.

“Proust diz que Dostoievski é original sobretudo na composição. É um conjunto extraordinariamente complexo e fechado, puramente interno, com correntes e contracorrentes como as do mar, que encontramos também na obra de Proust (aliás, bem diferente), e o mesmo cairia bem num filme.”

Como Dostoievski e Proust, Bresson é um artista que cria um sistema estético, único na história da arte. Apesar de ter discípulos (apóstolos?) tão diferentes quanto Jacques Doillon, Éric Rohmer, Bernardo Bertolucci (O último imperador, 1987, apesar de sua opulência visual, tem uma montagem abstrata à Bresson) e Jean-Luc Godard (no fundo do tormento visual de Godard, a gota mínima de Bresson), o universo bressoniano é inconfundível. Lembro que quando Doillon lançou seu fascinante Ponette (1996), meu amigo e crítico de cinema Tuio Becker estava fascinado com ela e com os ruídos e vozes assemelhados de O processo de Joana d’Arc (1961), equiparava a figura sofrida e austera da Joana d’Arc de Bresson aos sofrimentos que se escondiam em Ponette. Foi o mesmo Tuio Becker quem, diante da programação de televisão que exibiria Diário de um padre (1950) numa noite em casa dum amigo, disse a todos, “vão dormir, o filme é muito chato, eu vou vê-lo”, Tuio queria dizer: “o filme é muito chato para vocês, para mim é genial, não me perturbem com suas presenças desagradáveis, vão dormir que é tarde”. Assim, em rosácea, monto meu Bresson à luz de Notas sobre o cinematógrafo.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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