Poemas em Francês
Chanson (1831) é um poema rítmico escrito por Alfred de Musset: uma balada romântica, mas poderia ser musicado por um cantor popular de nossos dias
Chanson (1831) é um poema rítmico escrito por Alfred de Musset: uma balada romântica, mas poderia ser musicado por um cantor popular de nossos dias. Musset foi acima de tudo um poeta, um homem dos tempos do romantismo (em literatura) que, pelo vigor de seus achados em verso, transcendeu o seu tempo e ultrapassou a barreira de sua escola literária. Poeta embora, escreveu uma das obras-primas da novelística do século XIX, A confissão de um filho do século (1836), uma evocação da dor de amar e viver naqueles anos transformadores. Chanson é também uma evocação da dor de amar; e esta evocação, mais que tudo, se incrusta em sua forma, fazendo com que uma mesma frase adquira um outro sentido ao mudar de interrogativa para afirmativa.
Chanson é um diálogo do narrador poético com seu próprio coração; como ocorre na santíssima trindade, o dueto permite dizer que é um só dividido em dois. O ser-em-si de Musset é fiel, quer ter um único objeto por amor; o coração é volúvel e vê no “mudar sem parar” algo “doce e caro”. Os interlocutores siameses —o “eu” e o “coração”— se conflitam. É o filho do século em sua perturbação essencial.
“J’ai dit à mon coeur, à mon faible coeur:
N’est-ce point assez d’aimer sa maîtresse?
Et ne vois-tu pas que changer sans cesse,
C’est perdre en désirs le temps du bonheur?”
A cadência do primeiro verso é um pouco silábica, um pouco se assenta na reiteração a que se acrescenta um adjetivo, “à mon faible coeur”. O “fraco coração” não se dá por rogado e, no quarteto-resposta, exibe sua força:
“Il m’a répondu: Ce n’est point assez,
Ce n’est point assez d’aimer sa maîtresse;
Et ne vois-tu pas que changer sans cesse
Nous rende doux et chers les plaisirs passés?”
O tom reiterativo das frases ainda comanda os versos e vai mesmo estruturar todo o soneto, que se ajunta à sua palavra-título, uma “chanson”. À interrogação de se “não é bastante amar sua amante?”, o coração responde que não é bastante, não é bastante amar a amante, pois não vês tu (o poeta, o leitor do poeta) que mudar sem cessar nos torna doces e caros os prazeres passados e não, como constava do primeiro quarteto, significa perder em desejos um tempo de felicidade? Nos dois tercetos finais, o poeta vê tristeza e dor encontrada a cada passo pelo coração volúvel, enquanto o coração retruca que não há tristeza nas penas passadas convertidas numa lembrança doce e cara.
“Il m’a répondu: Ce n’est point assez,
Ce n’est point assez de tant de tristesse;
Et ne vois-tu pas que changer sans cesse
Nous rend doux et chers les chagrins passés.”
* * *
Charles Baudelaire é outro dos homens-canto da língua francesa diante do qual podemos ajoelhar-nos. Um poeta, essencialmente: como Musset. Como Musset, Baudelaire cometeu sua ficção: La fanfarlo (1847); assim, se Otávio, do romance de Musset, tem muito de seu autor, em episódios e espírito, mais ainda Samuel Cramer, o protagonista das vertigens metafóricas de Baudelaire, é o próprio poeta, “l’homme des belles oeuvres ratées; créature maladive et fantastique, dont la poésie brille bien plus dans sa personne que dans ses oeuvres. (“O homem das belas obras fracassadas; criatura mórbida e fantástica, da qual a poesia brilha bem mais em sua pessoa que em suas obras.”).
Mas a obra central de Baudelaire são os poemas de Les fleurs du mal (1861). O satanismo da escrita de Baudelaire fulmina em fogos verbais. Ele ataca todas as cegueiras de seu tempo, algo que o incomodava desde sua juventude. Curiosamente, este poeta das tensões simbólicas da linguagem era devoto do mestre do realismo romanesco, Honoré de Balzac. Lá pelo fim de La fanfarlo o narrador anota: “il n’éprouva cette jouissance égoïste du cigare et des mains dans les poches, dont parle quelque part notre grande romancier moderne.” (“ele experimentou esta volúpia egoísta do charuto e das mãos nos bolsos, de que fala em algum lugar nosso grande romancista moderno.”). O romancista, lemos numa nota de pé de página, é o “autor de A moça dos olhos de ouro”. Isto explica a latência do título da unidade-poema que Baudelaire viria a compor: Les fleurs du mal. Segundo Claude Pichois, o título definitivo estava latente já nos anos 50 do século XIX. Balzac o antecipara um pouco antes em Esplendores e misérias das cortesãs (1847). A expressão está na carta final que Lucien de Rubempré escreve ao padre Carlos Herrera; lemos num trecho: “C’est grand, c’est beau dans son genre. C’est la plante vénéneuse aux riches couleurs qui fascine les enfants dans les bois. C’est la poésie du mal.” (“É grande, é belo em seu gênero. É a planta venenosa das cores ricas que fascina os pequenos no bosque. É a poesia do mal.”). Baudelaire deu sequência ao universo da perversidade de Balzac: flores são poesia e podem ser, e melhor que sejam, do mal.
Como está no primeiro quarteto que abre este grande soneto que é Les aveugles:
“Contemple-les, mon âme: ils sont vraiment affreux!
Pareils aux manequins; vaguement ridicules;
Terribles, singuliers comme les sonambules;
Dardant on ne sais où leurs globes ténébreux.”
O primeiro verso é um petardo do mal: “Contempla-os, minha alma: eles são verdadeiramente pavorosos.” E a rima (linguística e visual) com o último termo desta peça inicial, “tenebroso” afunda as flores de Baudelaire cada vez mais no mal, um mal que é, em francês, “maladif”, doentio.
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Arthur Rimbaud é provavelmente o maior de todos os poetas franceses, quiçá do mundo. Ele tem um poema pouco conhecido chamado Le mal. Rimbaud tem um lado místico que não há em Baudelaire, e uma descontração de formas distanciada das composições rítmicas de Musset. Ele mete Deus em seu poema. E no terceto final deste poema de 1870 ele faz a ruptura religiosa entre o divino e o humano pela presença do dinheiro.
“Et se réveille, quand des mères, ramassées
Dans l’angoisse, et pleurant sous leur vieux bonnet noir,
Lui donnent un gros sou lié dans leur mouchoir.”
Numa tradução não poética:
“E desperta, quando mães, agrupadas
Em sua angústia, e chorando sobre seus velhos bonés pretos,
Lhe dão dinheiro enrolado em seu lenço!”
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O gentil Musset, o condenado Baudelaire e o pós-marginal Rimbaud: um itinerário de paixão pela versificação francesa.
(Eron Duarte Fagundes@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br