A Obscuridade Que Vem Chegando
A nova obscuridade de que fala o texto de Habermas talvez não seja a obscuridade de seus próprios signos vasculhados da realidade


“Aos poucos perco a fé na razão e só me socorro com imagens”, anota o cronista Juremir Machado da Silva. Mas a razão sempre volta para quem lida com palavras; uma razão que, paradoxalmente, se torna cada vez mais obscura, cada vez mais mística, cada vez mais perigosa, e cada vez mais próxima da loucura. Do cronista delirante salto para o pensador alemão Jürgen Habermas, um homem que tenta iluminar estes tempos de sombras cujo recrudescimento se tem instalado desde os anos 80 do século passado; a iluminação de Habermas é um pouco contaminada pela desrazão dos tempos, pensar o mundo com a loucura duma razão germânica é um exercício doloroso e necessário, o holofote filosófico. O livro: A nova obscuridade (Die Neue Umübersichlichkeit, Kleine Politische Schriften V; 1985), um ensaio duma época que se expande até a atualidade desta segunda década do século XXI, o limiar de um milênio.
Pergunta o filósofo: “Poder-se-ia, pois, ter alegria real, não dissimulada, em tal ingenuidade devaneada, em uma tal naturalidade artificial?” Crítico da utopia, contemporâneo lúcido e ácido da pós-modernidade, Habermas joga seus signos para uma oscilação entre uma loucura de pensar à germânica (minha alusão comparativa vai para as alucinações racionais absurdas e parabólicas do cineasta Alexander Kluge e para as longas meditações demenciais do romancista Thomas Mann) e um navegar por esta fluidez emocional em que os franceses, onde Habermas bebe um pouco, são mestres. Senão, como entender esta assertiva: “se continua a mover-se no exercício iluminador de uma filosofia negativa para discernir e suportar o discernimento de que, se há uma centelha de razão, ela só existe ainda na arte esotérica.”
A nova obscuridade de que fala o texto de Habermas talvez não seja a obscuridade de seus próprios signos vasculhados da realidade, cujos códigos nem sempre estão disponíveis na dimensão visível do pensamento. A nova obscuridade pode refletir-se (ou simplesmente refletir) nestes tempos recrudescidos pouco a pouco nos últimos quarenta anos. Para além do brilho kantiano de seu processo de raciocínio em palavras, o que se torna assustador e atual em Habermas é a permanência de certas estruturas antropológicas ainda hoje, e sob uma forma ainda mais cruel. O nebuloso perverso de hoje foi, de certa maneira, entrevisto pelo filósofo teutônico: “Há muita névoa hoje, em toda parte. Eu não desisto de que essa névoa possa se dissipar. Seria bom que se pudesse contribuir com algo mais para isso.” No entanto, Habermas sabe: as névoas dissipam-se, mas sempre voltam: são parte de nossas imperfeições, e de nossa obscuridade. Um cérebro em escrita como o de Habermas se esforça por reproduzir estas imperfeições, esta obscuridade. O texto final do livro chama-se: “A descontaminação do passado”, uma forma dolorosa de ajuste que se conclui com o tópico sobre uma “direção espiritual e moral”. O autor de conceitos como “ação comunicativa” e “esfera pública” constrói, nos anos 80, neste A nova obscuridade, um olhar sobre a obscuridade dum passado dado vinte anos antes, quando pseudorrevoluções tentaram exercitar-se no mundo; um olhar que chega até este futuro em que estamos para expor a cegueira habitual que voltamos para um passado eternamente contaminado. Em sua visão de mundo, apesar da complexidade de seu pensar, Habermas é bastante prático e objetivo: bem entendido, uma objetividade alemã.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

relacionados
últimas matérias




