Samuel e o Submundo
A Lei dos Marginais não tem qualidades que o elevem ao posto de clássico, mas com certeza merece ser assistido com atenção
Quanto mais filmes assistimos, mais nossa bagagem cinéfila torna-se inseparável de nossas memórias. Não demora muito e já captamos filmes dentro de outros filmes. Mais que identificar momentos de metalinguagem, percebemos referências insólitas que, em muitos casos, é pura coincidência. O cineasta Samuel Fuller, um dos americanos queridos dos jovens turcos da Nouvelle Vague, pode até não admitir, mas os primeiros minutos de seu longa A lei dos marginais, de 1961, tem ares de uma produção feita bem longe da terra do Tio Sam, dois anos antes.
O adolescente Tolly Devlin, interpretado neste momento por David Kent, rouba o relógio e a carteira de um bêbado em plena noite de natal. Sua fuga, filmada em ângulos que trazem o estilo de Fuller, com close-ups e planos detalhes, lembra um outro jovem que precisava de fôlego e sapatos confortáveis para correr da lei. Tolly é uma espécie de Antoine Doinel, o alter-ego de François Truffaut que se apresenta para o mundo em Os incompreendidos. Logo a lembrança se esvai quando não temos o charme das ruas de Paris e sim os becos escuros e úmidos da América, onde Tolly presencia seu pai ser espancado até a morte por quatro homens. Vem o juramento de vingança, alimentado dentro dos reformatórios e depois na cadeia por um Tolly que agora tem a cara de Cliff Robertson. A nova etapa de A lei dos marginais perde a pouco inocência que restava e torna-se um drama político e humano onde Fuller tem a liberdade de experimentar com sua câmera e os diálogos que cria sempre com um pé na realidade obscura. O submundo do título original é cotidiano do diretor que mesmo trabalhando nos grandes estúdios nunca abandonou seu estilo Filme B de criar.
Robertson está ótimo como protagonista, mas vale aqui destacar duas moças que, apesar de aparecerem por pouco tempo na tela, são a base (quase) sólida onde ele se sustenta. Sandy, vivida por Beatrice Kay, é a típica personagem feminina excêntrica do cinema fulleriano. Sua atitude maternal com Tolly é explicada em uma simples fala, informando que ela não pode ter filhos. São apenas alguns segundos que dão novo significado as dezenas de bonecas e fotos de bebês espalhadas pela casa da personagem. Será nesse ambiente que veremos Cuddles, a moça que Tolly ajuda para garantir a denúncia de um dos assassinos de seu pai, declarar ao som de uma caixinha de música que quer construir uma família com seu salvador. A família como redenção na selva que é o envolvimento com o alto escalão do crime, personificado na loira melancólica que busca afeto a qualquer custo e sequer cogita o que o destino lhe reserva ao lado de Tolly.
A lei dos marginais não tem qualidades que o elevem ao posto de clássico, mas com certeza merece ser assistido com atenção e é um exemplar com detalhes que reforçam a importância do cinema de Samuel Fuller não apenas no retrato cru e selvagem do mundo do crime, mas também suas sacadas cênicas repletas de símbolos. Como a cena da lixeira em que o nosso anti-herói se apoia após levar um tiro onde podemos ler a frase “mantenha sua cidade limpa”. Não é da bituca no chão que estamos falando. É das pessoas que existem e certas pessoas não querem ver.
Sobre o Colunista:
Bianca Zasso
Bianca Zasso é jornalista e especialista em cinema formada pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Durante cinco anos foi figura ativa do projeto Cineclube Unifra. Com diversas publicações, participou da obra Uma história a cada filme (UFSM, vol. 4). Ama cinema desde que se entende por gente, mas foi a partir do final de 2008 que transformou essa paixão em tema de suas pesquisas. Na academia, seu foco é o cinema oriental, com ênfase na obra do cineasta Akira Kurosawa, e o cinema independente americano, analisando as questões fílmicas e antropológicas que envolveram a parceria entre o diretor John Cassavetes e sua esposa, a atriz Gena Rowlands. Como crítica de cinema seu trabalho se expande sobre boa parte da Sétima Arte.