O Prazer de Filmar em Fuller

Talvez Samuel Fuller seja um cineasta sensorial, no mesmo sentido em que o eh outro norte-americano hoje em dia, Quentin Tarantino

01/06/2020 14:19 Por Eron Duarte Fagundes
O Prazer de Filmar em Fuller

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“Samuel Fuller não perde tempo pensando, é evidente que se rejubila filmando.” Frase enigmática do crítico e cineasta francês François Truffaut, escrita em 1960. Significa talvez que Fuller seja um cineasta sensorial, no mesmo sentido em que o é outro norte-americano hoje em dia, Quentin Tarantino (a ideia de um Tarantino sensorial está expressa num texto do comentarista gaúcho André Kleinert). Em Fuller, como em Tarantino, o pensamento é o próprio ato de filmar. Fuller foi um cineasta menosprezado em seu tempo e amado pelos analistas franceses, como Truffaut e Jean-Luc Godard (este o pôs numa aparição de seu filme Pierrot le fou, 1965, onde Fuller aparece vociferando que “cinema é emoção”). A emoção em Fuller nunca foi bem compreendida pelo público e pelos analistas: ele permanece em seu estágio B, merecendo o resgate por aqueles que amam o bom cinema; parece uma condenação eterna do cinema de Fuller.

Paixões que alucinam (Shock corridor; 1963) é uma de suas obras básicas. Poucas vezes o cinema visitou com tanto brilho e invenção o país da loucura. É um filme que antecipa certas coisas que respingam em Um estranho no ninho (1975), do tcheco Milos Forman, e em Ilha do medo (2010), do norte-americano Martin Scorsese. Pelo olhar tresloucado de John Barrett, o roteiro de Fuller põe em cena as delirantes cenas dum hospital psiquiátrico que parecem caracterizar, como metáfora, os próprios Estados Unidos da América e suas demências, como o racismo, o misticismo e o terror; John é um jornalista que decide investigar um crime e arma uma trama para que o internem no manicômio em que se deu o assassinato; como o contato com a loucura não deixa ninguém intacto (basta ler os contos Enfermaria nº6, 1892, do russo Anton Tchekhov, e O alienista, 1881, do brasileiro Machado de Assis), John vai, no término de sua jornada, mesmo que descubra o criminoso, virar um esquizofrênico catatônico e, para desespero de sua namorada, que o ajudou na trama da internação, vai ficar para sempre internado. As imagens dos loucos quase como zumbis em suas posições gestuais são pintadas extraordinariamente por Fuller; a panorâmica final que percorre o hospital catando os doidos é um deslumbramento. Com duas sequências a cores (uma no Oriente de Buda, outra entre os silvícolas da região amazônica, ambas naquele colorido primitivo e desbotado para identificar os delírios oníricos de um demente), o filme conta com um esplendoroso preto-e-branco da fotografia de Stanley Cortez; a música de Paul Dunlap é igualmente incisiva.

A epígrafe do grego Eurípides que abre e fecha o filme (“Quem se entrega à destruição é transformado em louco por Deus”) insere Paixões que alucinam no terreno das parábolas místicas. Sem todavia círculos rocambolescos, a obra-prima de Fuller é um filme de raro senso cinematográfico, dotado duma exatidão única em todos os seus movimentos. Com um elenco hoje não muito evocado (Peter Breck como Barrett e Constance Towers como Cathy à frente), o filme de Fuller é um daqueles grandes trabalhos ignorados pelas referências habituais do cinema. Não surpreende: a despeito de ser profundamente americano, fere algumas regras do bom senso ianque. Voltando ao Truffaut do início deste comentário, pode-se dizer que o espectador de Fuller se enche de admiração e ciúme: deleita-se com as lições do cinema, mas percebe que nunca poderá filmar assim, pois o que não se aprende é a ter talento.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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