A Gota de Literatura no Cinema
No caso do primeiro filme longo de ficção de Joaquim Pedro de Andrade, O padre e a moça (1966), o aspecto duma gota literária se evidencia bastante
Joaquim Pedro de Andrade, um dos mais fortes autores cinematográficos brasileiros, partiu em quase todos os seus roteiros de originais literários. Fábio Barreto, um diretor bastante menos criativo que Joaquim, também seguiu esta trajetória, pois, dizia ele (apud O chão da palavra, 1994, de José Carlos Avellar, aquele primeiro texto deste ensaio de Avellar na Feira do Livro de Frankfurt), não sentiu segurança na primeira história que escreveu e partiu para a adaptação de um conto de Bernardo Elis. Entende-se Barreto e suas limitações. Mas que levou Joaquim a insistir nas muletas literárias? Acho que a necessidade de diálogo do cinema de Joaquim com a literatura. Ele cruzou os universos de Mário de Andrade, Cecília Meireles, Dalton Trevisan, Pedro Maia Soares e Oswald de Andrade, mas quem viu seus filmes sabe que ali a literatura é uma gota e o mais é criação fílmica.
No caso de seu primeiro filme longo de ficção, O padre e a moça (1966) o aspecto duma gota literária se evidencia bastante. O ponto de partida é um poema de 1962 de Carlos Drummond de Andrade. No entanto, os versos de Drummond não zanzam pelas imagens do filme, com exceção daquela citação do letreiro final. Onde está a poesia de Drummond na realização de Joaquim Pedro? A história imaginada pela versificação de Drummond é o mote na cabeça cinematográfica de Joaquim. A referência mais autêntica de O padre e a moça diz respeito ao cinema mesmo. As origens do filme de Joaquim Pedro é Diário de um padre (1950), do francês Robert Bresson. Como Bresson, Joaquim é um rigoroso da imagem, fundindo as sensações plásticas com êxtases místicos visuais. Como Bresson, Joaquim desdramatiza a ação do ator e discute sem dogmatismos a trajetória laica de um religioso, seus gestos diante duma moça malvista pela comunidade e as consequências destes seus gestos no modo como a comunidade vê o religioso, explodindo na grande sequência final da gruta em que os moradores ateiam fogo ao cenário onde estão o padre e a moça. Diferentemente de Bresson, Joaquim Pedro é bem menos secreto em expor as relações transbordantes entre o padre e a moça; se em Bresson há profundidades de comportamento ocultas, em O padre e a moça há belas e plasticamente angustiantes cenas de erotismo do corpo de Helena Ignez devorado sutilmente por um padre cheio de afagos e levezas tal como o compôs Paulo José. Bresson das Gerais, tal como o definiu Rogério Sganzerla em artigo de 1968, Joaquim vale-se da fotografia gráfica de Mário Carneiro (o mesmo de Porto das caixas, 1963, de Paulo César Saraceni) para expor uma crua e melancólica luz brasileira, sintetizada um pouco por personagens como o padre, a moça, o farmacêutico e o comerciante, um grupo de homens diante do fascínio duma mulher.
E o espectador pode, pensando nas imagens do filme, recitar Drummond: “O padre furtou a moça, fugiu/Pedras caem no padre, deslizam./A moça grudou no padre, vira sombra,/aragem matinal soprando no padre/ Ninguém prende aqueles dois,/aquele um/ negro amor de rendas brancas.” Refazemos a cabeça de Joaquim, estimulando-se por estes versos, imaginando o que depois apareceria na tela, o padre que sequestra a moça dos males da cidade, conduzindo-a pela aridez das Gerais, a moça grudando nele atrás, as ambientações esbranquiçadas tingidas do negro amor. É um pouco como se nos substituíssemos à cabeça de Joaquim Pedro pensando seu próprio filme.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br