A Realidade É um Símbolo
Numa entrevista para a apresentação do lançamento de O deserto vermelho (Il deserto rosso; 1963) em Paris, o diretor italiano Michelangelo Antonioni diz que seu filme é antes sobre um ambiente que sobre uma personagem
Numa entrevista para a apresentação do lançamento de O deserto vermelho (Il deserto rosso; 1963) em Paris, o diretor italiano Michelangelo Antonioni diz que seu filme é antes sobre um ambiente que sobre uma personagem; de certa maneira, aproveitando este gancho do próprio realizador, pode-se dizer que todos os trabalhos de Antonioni trazem num primeiro plano estético esta obsessão pelo cenário, pelo local onde se passará a história, revelando cuidados plásticos soberbos com a composição da ambientação. Na abertura da citada entrevista, Antonioni disserta minuciosamente sobre seu fascínio pela cidade mediterrânea de Ravena, vizinha de sua cidade natal, Ferrara; acompanhando ao longo dos anos a transformação de Ravena de meio natural para meio industrial, Antonioni se impressionou com esta metamorfose e é esta metamorfose que está plasmada em imagens em O deserto vermelho.
A abertura do filme se dá durante uma greve de operários. Que me conste, é a segunda e última vez em que a figura do operário, sugerindo algumas preocupações sociais, aparece na filmografia de Antonioni, toda ela marcada por abstrações intelectuais e existencialismo: o outro filme de Antonioni em que o operário vem à cena, e aí é o protagonista, é O grito (1957). Mas as divagações sociais em Antonioni são mesmo vagas e longínquas; a personagem que dá sentido ao cenário nebuloso de O deserto vermelho é a neurótica Giuliana, composta admiravelmente pela intérprete-musa do cineasta, Monica Vitti; diz Antonioni que observou em convivência alguns neuróticos para levar sua Vitti à interpretação que vemos na tela, e estes escrúpulos gestuais do cinema de Antonioni transparece muito na linguagem cinematográfica de O deserto vermelho (gestos dos atores, rompantes da câmara e da montagem). Apesar da contemplação sobre um meio industrial ( a fumaça amarela poluente que inicia e termina a narrativa visual), O deserto vermelho é um mergulho no coração de uma personagem antonioniana na linha da trilogia da incomunicabilidade, filmes perfeitos como A aventura (1959), A noite (1960) e O eclipse (1961). O deserto vermelho foi a primeira experiência a cores de Antonioni, experiência que ele exacerbaria na explosão final de Zabriskie Point (1969) e em sua pioneira filmagem em vídeo-tape O mistério de Oberwald (1980). Há também em O deserto vermelho algumas sequências neblinosas no porto; o gosto pelo mistério da neblina europeia geraria num de seus filmes menos referidos, Identificação de uma mulher (1982), uma das mais belas e potentes cenas realizadas por Antonioni, aquela em que a mulher desaparece no centro da neblina, numa reedição do fenômeno metafísico feminino de A aventura.
Se Turim serviu de liame cênico para as questões das mulheres de As amigas (1955) e Milão foi a ambientação criada para o existencialismo de A noite, Ravena se liga indissoluvelmente à loucura de Giuliana em O deserto vermelho. A neurose incompreensível e incompreendida de Giuliana lembra outra demente do cinema da alma, a Karin vivida por Harriet Andersson em Através de um espelho (1961), do sueco Ingmar Bergman. Cada autor pinta a loucura à sua maneira: mais infernal e distante em Bergman, mais austera e matemática em Antonioni; a diferença da pintura para um desenho geométrico.
Lá pelo fim do filme, diante da insistência de Corrado, o homem que está quase sempre com ela em cena, Giuliana, tendo atrás de si uma parede branca (as famosas paredes brancas de Antonioni são abundantes nesta realização), diz: “Há algo de terrível na realidade e não sei o que é. Ninguém me diz.” Nem Corrado salva Giuliana de seu mal, ela revela na frase que vem depois.
Na entrevista que referi no parágrafo inicial deste texto, Antonioni, questionado, diz que não filma por símbolos, filma baseando-se no real, os símbolos vêm depois. Mas certamente eles vêm com muita força. São os símbolos que devoram as imagens de Antonioni, imagens que estão entre as mais persistentes da história do cinema: e muito desta persistência se prende a seu notável caráter simbólico.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br