A Maturidade e a Adolesc?ncia: Descobrindo o Brasil
O roteiro do filme abre uma janela para a realidade exterior, uma realidade social e pol?tica
Numa narrativa lenta, onde os planos são introspectivos e as situações narradas se voltam essencialmente para os conflitos interiores e particulares das personagens, o roteiro do filme abre uma janela para a realidade exterior, uma realidade social e política. Em Mudança (2020) o diretor Fabiano de Souza põe esta janela no início da narrativa, e será pelas frestas intersticiais desta janela (algo como sempre que a cortina se abrir) que a intimidade das duas personagens centrais, um pai maduro e seu filho adolescente, será iluminada. A ação do filme tem uma data certa: 15 de janeiro de 1985. A referência histórica do dia aparece em reportagens televisivas que a montagem utiliza: Tancredo Neves fora eleito presidente da República por um colégio eleitoral, e a ditadura militar brasileira instalada em 1984 expirava. A ação do filme cobre esse dia: o pai e seu filho saem da praia, deixando ali a esposa e a mãe que estava a trabalhar num texto, e vão para a cidade comemorar a chegada da mudança no país. É um pouco uma viagem de descobrimento: o homem, que vivera sempre sob o regime sem poder escolher seu presidente, tem no caminho um envolvimento afetivo fugidio e estranho, e o rapaz mergulha em subterrâneos perigosos para sua descoberta do mundo que é também a descoberta de um país em que poderá votar para presidente da República.
Para meditar neste terceiro filme do realizador, é bom volver os olhos para suas obras anteriores, as referências contidas nas narrativas que ele compôs. Em A última estrada da praia (2011) Fabiano recorreu a suas leituras do romance O louco do Cati (1942), de Dyonélio Machado. Em Nós duas descendo a escada (2016) as duas mulheres se amam aos sons-imagens de Eu te amo (1980), filme de Arnaldo Jabor que elas veem no cinema. Pode-se dizer que a alusão que se pode perceber em Mudança é mais secreta: como o próprio filme. O novo Fabiano evoca certas construções que havia em Nunca fomos tão felizes (1984), de Murilo Salles; a tensão (no filme de Murilo mais agudamente elíptica) entre o lado íntimo das personagens e as circunstâncias históricas em torno; o filme de Murilo, passado basicamente num apartamento em Copacabana, no Rio, em 1970, também aludia ao período de governos militares no Brasil; o filme de Murilo foi rodado ao calor das diretas-já, que é um pouco o tempo histórico em que se passa o filme de Fabiano.
Depois da estrada da praia, de descer a escada com duas mulheres, Fabiano de Souza tenta a mudança espiando os efeitos da mudança em duas criaturas etariamente distantes (um homem maduro e um adolescente) mas cujos comportamentos diante dos fatos novos seguem, cada um à sua maneira, idêntico caminho de descobertas num país em mudanças. Ao abrir a janela para o exterior das pequenas coisas que encena, o cineasta parece estar abrindo janelas para seu próprio cinema.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br