O Refinamento Intelectual de Gide

André Gide me persegue, literariamente, desde minha juventude. Os moedeiros falsos (Les faux-monnayeurs; 1925) é uma grande assombração literária

20/01/2019 23:29 Por Eron Duarte Fagundes
O Refinamento Intelectual de Gide

tamanho da fonte | Diminuir Aumentar

 

André Gide me persegue, literariamente, desde minha juventude. Os moedeiros falsos (Les faux-monnayeurs; 1925) é uma grande assombração literária; pondo um romancista dentro dum romance no exato instante em que está construindo o romance, Gide faz da edificação dum romance a personagem central de seu romance, em torno da qual circulam as demais personagens como serviçais ora mais refinados, ora mais incautos, ou as duas formas no mesmo estado. É uma antecipação daquilo que, muitos anos depois, o cinema faria sob diversas bandeiras: a metalinguagem de Federico Fellini, François Truffaut ou Jean-Luc Godard. Mas Os moedeiros falsos é essencialmente literário. Diz Gide: “Depouiller le roman de tous les élements qui n’appartiennent spécifiquement  au roman.” (“Despir o romance de todos os elementos que não pertencem especificamente ao romance.”). Os moedeiros falsos é o romance como arte pura: dotado de especificidade como gênero. Por ter radicalizado em afastar seu trabalho de certas trivialidades do cotidiano, Gide sabe que fez um artifício, exageradamente reflexivo, exageradamente depurado; mas é como o artista imagina que deveria ser a vida, este jogo de sensibilidades e ideias tal como ela é encenada em cabeças como a de Gide. Edouard, a personagem de romancista que é porta-voz do romancista-centro que é Gide, tergiversa sobre uma peça de Racine onde um pai e seus filhos adotam um elevado tom verbal que não se encontra na vida, mas onde “néanmoins (et je devrais dire: d’autant plus) tous les pères et tous les fils peuvent se reconnaître.” (“todavia (e eu deveria dizer: tanto mais) todos os pais e todos os filhos podem reconhecer-se.”). Para Gide: a arte como espelho que deforma e elucida: já não a análise psicológica de Stendhal, mas um novo imaginário intelectual-estético que Gide fundava naqueles anos 20 do século passado.

Os moedeiros falsos se passa entre indivíduos interessados em discutir literatura. As cenas iniciais se dão nas cercanias do Jardim de Luxemburgo, no coração de Paris. Por ali morava, no início da narrativa, Bernard Profitendieu, filho dum Juiz de Direito e uma das principais personagens do romance de Gide. O narrador de Gide escreve por ali, num determinado local do Jardim, “on causait art, philosophie, sports, politique et littérature” (“se discutia arte, filosofia, esportes, política e literatura”), quer dizer, era o grupo dos sensíveis inteligentes da capital francesa que pelos anos 20 fazia os acontecimentos da metrópole cultural.

Os episódios narrados pelo contador onisciente é, amiúde, interrompido pelo “Diário de Edouard”, que ocupa longos trechos narrativos. Em seu diário Edouard observa a vida em torno e fala do romance que está escrevendo, Os moedeiros falsos, que aparece para o leitor de Gide como um espelho do próprio romance que se está lendo. Como Gide, Edouard tateia no escuro em busca de seu assunto. O assunto, este, se afigura como um simples pretexto: para a composição estética. No entanto, a certa altura Edouard anota em seu diário: “Je commence à entrevoir ce que j’appelerais le ‘sujet profond’ de mon roman. C’est, ce sera sans doute la rivalité du monde réel et de la représentation que nous nous en faisons.” (“Começo a entrever o que eu chamaria o ‘objeto profundo’ de meu romance. É, será provavelmente a rivalidade entre o mundo real e a representação que dele nos fazemos.”). O pretexto agudo para construir um dos mais belos romances da história está posto. Os moedeiros falsos fustiga a realidade com seu estilo de escrever.

Edouard é o protagonista: o escritor de verdade. Mas onde está a falsa moeda da literatura? Gide põe em suas páginas, para o confronto de Edouard, outro escritor, o conde Robert de Passavant, cuja obra A barra fixa foi acolhida por certos círculos com uma benevolência que repugna a Edouard. Para o autor dOs moedeiros falsos, este livro dentro dum livro, Passavant abastarda a literatura. É a vida falsa, a que se insinua para substituir a boa moeda.

Numa das falas iniciais do romance, Gide põe na boca duma personagem um pouco de sua concepção de ações múltiplas que se aproximam e afastam. “—Ce que je voudrais, disait Lucien, est raconter l’histoire, non point d’un personnage, mais d’un endroit —tiens, par exemple, d’une allée du jardin, comme celle-ci, raconter ce qui s’y passe —depuis le matin jusqu’au soir.” (“—O que eu gostaria, dizia Lucien, é contar a história, não propriamente duma personagem, mas dum lugar— toma, por exemplo, uma aleia de jardim, como esta, contar o que se passa aqui— da manhã ao entardecer.”). Uma visão circular sobre várias vidas. Um caleidoscópio verbal. Se o belo Jardim de Luxemburgo descortina os primeiros movimentos dOs moedeiros falsos, uma sala de aula vai ser o cenário de algumas das páginas finais do romance; no lugar da ideia de construção narrativa de Lucien, o suicídio dum menino de escola. Este suicídio é um ato-fato que desconcerta o próprio narrador. Que se veste com a pele de Edouard e acresce em seu diário: “C’est; pourquoi je ne me servirai pas pour mes Faux-Monnayeurs du suicide du petit Boris; j’ai déjà trop de mal à le comprendre.” (“Eis: por que não me servirei para meus Moedeiros falsos do suicídio do pequeno Boris; já tenho muita dificuldade em compreendê-lo.”). Ao chocar-se com uma certa intensidade vital, o universo dOs moedeiros falsos recua. A vida segue. Os mortos ficam para trás. Novos seres circulam. Escreve Edouard: “Je suis bien curieux de connaître Calub.” (“Estou bem curioso para conhecer  Caloub.”). Os moedeiros falsos permanece na cabeceira de minhas ideias sobre literatura. Como numa leitura feita no salão duma biblioteca, há cerca de quarenta anos. Para pensar com o crítico brasileiro Álvaro Lins: vamos aceitar que a realidade não é bem assim como está no romance de Gide; mas poderia sê-lo.

 

P.S.: O homossexualismo de André Gide determinou muito da forma de sua escrita: não é um conceito que se possa definir com objetividade; é mais uma intuição da sensibilidade leitora. Na influência da vida sexual sobre a literatura de outro escritor francês famoso, Marcel Proust, há mais dados objetivos, sintáticos, vocabulares, temáticos, formas de relações entre as personagens. Em Os moedeiros falsos há um momento em que alguém diz: “Quant à hémorroïdes, c’est assurément le plus beau mot de la langue française...” (“Quanto a hemorroidas, é seguramente o mais belo vocábulo da língua francesa...”). Estranha evocação do gosto vocabular de Gide: mas seria sintomático de sua literatura vertendo para o homossexual? Gide foi casado com uma prima a quem nunca teria possuído fisicamente: paixão platônica ou tapar o sol com a peneira?

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

Linha
tamanho da fonte | Diminuir Aumentar
Linha

Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

Linha
Todas as máterias

Efetue seu login

O DVDMagazine mantém você conectado aos seus amigos e atualizado sobre tudo o que acontece com eles. Compartilhe, comente e convide seus amigos!

E-mail
Senha
Esqueceu sua senha?

Não é cadastrado?

Bem vindo ao DVDMagazine. Ao se cadastrar você pode compartilhar suas preferências, comentar ou convidar seus amigos para te "assistir". Cadastre-se já!

Nome Completo
Sexo
Data de Nascimento
E-mail
Senha
Confirme sua Senha
Aceito os Termos de Cadastro