A Luta Negra no Brasil em pico Romanesco
Os tambores de So Lus o romance da ingenuidade grandiloquente, aquela mesma ingenuidade brasileira que Freyre sofistica com o refinamento de seu texto
Segundo o escritor gaúcho Juremir Machado da Silva, Os tambores de São Luís (1975), o mais referido romance do maranhense Josué Montello, é o melhor romance brasileiro do século XX; Juremir não dá muitos detalhes sobre esta sua preferência, mas acresce que se trata duma obra-prima escrita por um escritor medíocre, o que pode dar margem a muitas interpretações semiológicas ou ser simplesmente mais uma das ironias paradoxais do grande romancista gaúcho, cujas apreciações literárias sempre se deve levar em conta (ele conhece do riscado como poucos) mas que, penso eu, muitas vezes vai no rastro duma literatura bastante diversa daquela que o próprio Juremir pratica, o que é também bastante normal no mundo literário. Compreende-se o entusiasmo de Juremir, ainda que ele não tenha dado pistas: Juremir é devoto de Casa Grande & Senzala (1933), a obra-prima de sociologia do pernambucano Gilberto Freyre; e o livro de Montello nada mais é do que a transformação ficcional das ideias de Freyre sobre a formação racial no Brasil. Diz-se que Gilberto, com seus pensamentos sobre o Brasil, gerou o romance de 30, influenciando gente tão diversa quanto Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Amando Fontes ou Jorge Amado; e vai-se descobrir décadas depois que o ficcionista que melhor “leu” Freyre foi Montello, mesmo com seu verbo mais desparelho e sua movimentação de personagens desajustada ainda que épica. E Montello acode-nos no posfácio, parece que defendendo-se, dizendo-nos que sem um pouco de ingenuidade não se faz romance; Os tambores de São Luís é o romance da ingenuidade grandiloquente, aquela mesma ingenuidade brasileira que Freyre sofistica com o refinamento de seu texto.
Um exemplo que salta de como as coisas se operam do ensaio de Gilberto para a ficção de Josué. No capítulo IV de seu livro, Gilberto começa: “Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo —há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil— a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro.” É a famosa polêmica da teoria da mestiçagem, da busca da implantação duma democracia racial pelo cruzamento de raças. Lá pelas tantas do romance de Montello um negro começa a perorar: “— Eu tenho um modo muito meu de combater a escravidão. Sempre que posso, papo uma branca, mesmo que feia, e deixo um filho na barriga dela... Muitos deles nem sabem que eu existo. Mas eu sei que, na origem deles, está a piroca deste preto na babaca de uma branca.” Mais do que todo o romance de 30, é no tardio Montello que as teses de Freyre toparam guarida ficcional.
Tem lá suas ingenuidades, talvez excessivas, mas é impossível deixar de acompanhar com algum arrebatamento a trajetória secular do negro Damião, uma espécie de símbolo da peleja racial no Brasil. Demais, é impressionante a naturalidade com que o texto de Montello contrasta a elaboração literária do texto narrativo (a voz do narrador) com a sintaxe e a concordância desarrumadas das conversações populares dos diálogos.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br