A Historica Noite do Cinema Brasileiro

Noite vazia, uma obra intelectual que fala de um mundo nao intelectual, embora situado entre a elite economica brasileira

14/06/2021 04:14 Por Eron Duarte Fagundes
A Historica Noite do Cinema Brasileiro

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Travellings noturnos são as primeiras imagens de Noite vazia (1964), do paulista Walter Hugo Khouri. Faróis de carros, edifícios, luzes da cidade no meio da escuridão. O que vemos em cena é São Paulo, a metrópole brasileira por excelência. Nos planos iniciais de Eros, o deus do amor (1981), novos e angustiados travellings da capital paulista. São Paulo, a cidade, é personagem determinante da estrutura narrativa de Noite vazia, sua estilística circular em torno daquilo que já nos anos 60 o crítico Jean-Claude Bernardet identificou como constrangedora puerilidade de intenções (“sonhos de adolescentes que ainda não descobriram o sexo alheio”, “um filme feito para chocar o público dos domingos e os censores”).

Noite vazia é a obra intelectual que fala de um mundo não intelectual, embora situado entre a elite econômica brasileira. Os burgueses que Khouri retrata têm somente dizeres de pouca monta e às vezes mesmo dizeres imbecis para as mulheres com quem saem numa determinada noite de vazios paulistanos; a pobreza dos diálogos contrasta com a riqueza cinematográfica de Khouri, sua atenção para um detalhe de olhar ou cenário, para um esgar do corpo ou uma justaposição da montagem. Certo: as fêmeas trazidas pelo roteiro são prostitutas e, referidas como criaturas pobres e incultas, uma exacerbação intelectual dos homens poderia parecer artificiosa; mas bem que Khouri, em seu refinamento literário, poderia trabalhar melhor as frases —algo que ainda hoje faz o norte-americano Woody Allen, com todas as críticas que lhe deitam.

Debruçando-se sobre o tédio, Noite vazia é um pouco como se o italiano Michelangelo Antonioni rascunhasse na adolescência seu futuro A noite (1960). O tédio dos burgueses de Khouri está ainda longe da profundidade que o enfado teve nos seres de Antonioni. Mesmo assim, a noite de busca do prazer encenada por Khouri marcou o cinema brasileiro; ainda que a filosofia dentro da ficção de Khouri pareça frágil para sustentar a dialética dos dois casais que se formam ao longo do filme (o casal que tende ao amor e o casal que se mercantiliza cinicamente), é o rigor do estilo de filmar de Khouri (ou sua depuração extremada) que dá a Noite vazia um vigor cinematográfico que atravessa os anos.

É curioso observar que Khouri centra o poder das interpretações de seu filme nas mulheres. Mario Benvenuti e mesmo Gabriele Tinti esforçando-se pela introspecção são títeres na narrativa. O rendimento humano vem das atrizes, Norma Bengell (uma cena de seios expostos na varanda, recebendo a chuva é antológica) e Odete Lara (seu olhar duro numa das cenas finais, a câmara afastando-se com o carro dos homens que a deixam num ponto da cidade após a noitada), é o que faz Noite vazia transbordar do cinema figurativo para o humano. Como curiosidade de elenco que passou à história do cinema, a breve participação do ator David Cardoso como um rapaz que chega ao apartamento da farra com uma garota de família esgueirando-se depois ainda à porta com a menina sem  entrar na bagunça sexual dos lascivos; a aparição de David acaba sendo importante porque o ator foi um nome fundamental de um certo cinema brasileiro nos anos 70 quando esteve à frente de algumas pornochanchadas como ator, diretor ou produtor.

Há pelo menos duas sequências de exemplar construção cinematográfica que elevam o filme acima de si mesmo. Numa delas a personagem de Norma, olhando a chuva na vidraça, virando e revirando-se na cama, lembra imagens de sua infância, os bolinhos fritando na frigideira, um garoto (irmão?) olhando para a frigideira: é belíssima a inserção destes planos de memória. A outra sequência é quando as mulheres, após a noitada, descem do carro dos homens; a câmara as enquadra, elas ficam como estátuas (a rigidez de Odete, a doçura de Norma), dá-se um afastamento de câmara que simula o afastamento do carro, quase no fim do plano as mulheres começam a mover-se lateralmente para a esquerda. A construção cinematográfica em Khouri é sempre um estudo.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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