Quem se Interessa por Bernardet Hoje em Dia?
A falta de importancia do intelectual de cinema e do intelectual de maneira geral se caracteriza no documentario A Destruicao de Bernardet
A falta de importância do intelectual de cinema e do intelectual de maneira geral se caracteriza no documentário A destruição de Bernardet (2016), de Claudia Priscilla e Pedro Marques, e na indiferente recepção pública que o filme tem recebido por aqui em Porto Alegre, ainda que seja exibido numa sala bem comercial. Morto o carioca José Carlos Avellar, Jean-Claude Bernardet resta-nos como o grande cérebro de pensar sobre filmes cujo auge coincidiu com os tempos do Cinema Novo. No entanto, é de se perguntar: que interesse tem isto para a atual sociedade brasileira? que interesse tem o cinema? que interesse tem a guinada de Bernardet na extrema velhice, preferindo aparecer diante das câmaras a propor reflexões sobre os rumos de nosso cinema como fazia outrora tão bem? E mais: que interessa criticar as ações de Bernardet se tudo o que fazemos tem muito menos capacidade de conflito que as fusões mistas que o grande crítico faz no interior do cinema brasileiro?
Bernardet diante das câmaras não é propriamente o que chamamos um ator. É um atuante. Esta sutil distinção permite compreender suas altercações com um ator mesmo, João Miguel, em Periscópio (2012), de Kiko Goifman, apresentado aqui em Porto Alegre pelo próprio Goifman e por Bernardet, diante de cujas declarações (as de Goifman e as de Bernardet) ficou bastante claro que aquilo que transparece no filme nos sarcasmos cênicos de João e Jean-Claude ocorreu nos bastidores da produção. Pois Goifman é um dos roteiristas de A destruição de Bernardet (divide a assinatura do roteiro com a diretora Priscilla). Tenta-me imaginar que a ideia geral da realização é de Goifman: expor o pensamento-Bernardet a um corpo em decadência, fazer esta miscelânea espírito-físico para questionar o que há na rampa de descida final duma espécie de mito cinematográfico. Como em Antes do fim (2017), de Cristiano Burlan, o cerne da narrativa é um texto em blog já clássico de Bernardet, em que esta persona incrível do universo brasileiro analisa os fundamentos comerciais da indústria da medicina, a ideia da longevidade como um interesse do mundo médico (onde se incluem os medicamentos e os exames e até os planos de saúde) de ganhar dinheiro.
De Orgia, ou o homem que deu cria (1970), de João Silvério Trevisan, a Hamlet (2014), de Cristiano Burlan, o corpo de Bernardet é exposto no cinema brasileiro à margem, ou em paralelo, com seu agudo pensamento cinematográfico disposto em vários textos, dos jornais, livros até a atual internet. Em A destruição de Bernardet esta exposição do corpo dum pensador atinge o auge, o transe: o corpo em transe, ainda sacudido pela energia do pensamento. O escritor mineiro Silviano Santiago, em seu romance Machado (2016), aludia a uma autorrepresentação da própria (lenta) destruição (pela velhice) de seu corpo enquanto escrevia sobre o defunto Machado de Assis, como se vivesse naqueles tempos defuntos e um pouco como se fosse o espelho dos anos finais de Machado. No caso de Bernardet, são outros que o dirigem, que fazem a representação de sua destruição física: mas a presença autoral do ensaísta nos filmes em que participa é tão forte que em alguma instância ele parece assumir uma direção geral da encenação de si mesmo.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br