Numa das sequências mais famosas de Teorema (Teorema; 1968), de Pier Paolo Pasolini, acompanhamos um jovem pintor, filho dum industrial, em seu atelier. No chão, junto do pintor, vemos uma tela onde tudo o que ele pintou foi a cor azul. Nos planos finais da sequência, a personagem abre as calças. Então, a câmara posiciona-se atrás da personagem, que está diante da tela no chão. O espectador vê: o pintor urina sobre a tela, observamos a urina descer para a tela. Um pintor, um artista, dentro da narrativa pode indicar pistas sobre o outro artista, o que criou o pintor, o homem atrás das câmaras. Teorema é um filme-enigma de Pasolini. Com intervalados e abstratos diálogos, ele evita a relação retilínea com o observador. Talvez Pasolini faça com seu filme um pouco como o pintor com sua tela: desafoga-se da roupa e urina ali. Urinar, fazer filmes: naturezas simples mas também enigmáticas.

Num prólogo antes dos créditos, a primeira imagem de Teorema é um movimento lateral de câmara para enquadrar as dependências duma fábrica. São imagens em cores. Esta sequência inicial vai dar numa entrevista que um jornalista faz com um empregado da fábrica; não vemos seu rosto, a câmara se movimenta em torno de suas costas, de ângulos laterais que o ocultam, ouvimos as perguntas e o que o entrevistado diz, percebemos que o dono da fábrica está entregando a fábrica aos operários, o jornalista questiona se não se trata de transformar a todos em burgueses, o empregado rejeita, “a burguesia nunca conseguirá transformar todos em burgueses”. Depois deste prólogo, e dos créditos (estes, já numa fotografia pastel, em preto-e-branco) que parecem cinema mudo, é como inicialmente as personagens se apresentam. Na verdade, Teorema tem poucos diálogos, espaçados, que se alçam a chaves alegóricas; ainda que bastante claro em sua crítica antiburguesa e na composição das personagens, Teorema não se entrega facilmente em seus significados.

A primeira cena narrativa a cores parece ser numa reunião familiar e de amigos, uma comemoração, uma festa. Teorema começa então a apresentar as vidas estruturadas para as desestruturar. Em vários planos Pasolini enquadra as expressões entediadas daquelas pessoas. A trama se compõe em seus símbolos. O casamento de Lucia (a composição única de face e imagem de Silvana Mangano) e de Paolo (Massimo Girotti, já o galã em declínio) enfrenta suas insatisfações humanas, eróticas. Então, o forasteiro: na pele de Terence Stamp primeiro ele alucina Emilia, a empregada, que, entre a atração por um homem e sua pudicícia religiosa, tenta envenenar-se com gás na cozinha, mas é por ele salva antes de os dois perpetrarem o sexo desejado mas para ela culposo. O forasteiro não para: seduz Lucia, a burguesa, e também os jovens, Odetta (que depois da cena em que vemos o seio de Anne Wiamzemsky, fica catatônica) e Pietro (que desvenda sua natureza homossexual). Mais para diante, Lucia passa a entregar-se a vários amantes, jovens. O forasteiro e seu papel social (e no cinema de Pasolini, narrativo): desmontar a família burguesa. Aquela cena do início (o patrão entregando aos empregados a fábrica) na verdade é do fim, no caminho de desestruturas foi aonde foi ter tudo o que depois se viu ao longo do filme.

No fim de Teorema duas sequências se alternam como interligando-se. Emilia, que está no interior, deita seu corpo no terreno, para que uma amiga, a seu pedido, jogue terra sobre ele, o corpo, enterrando-o. Paolo sai duma estação, vai para o deserto, despe-se e no plano derradeiro, após uma corrida pelas dunas, grita, desesperado para aquela natureza árida. Pasolini alterna cenas da sequência da mulher que vai enterrar-se com cenas do industrial que largou tudo. Fuga e libertação em dois gestos diferentes de personagens diferentes, Emilia e Pietro. Uma tentativa de completar-se semiologicamente.

Voltemos ao pintor que urina sobre a tela. É o que Pasolini parece fazer. Enigmaticamente. Pasolini poderia aqui ser convertido numa personagem do brasileiro Glauber Rocha, o Paulo Martins de Terra em transe (1967), de quem outra personagem dizia que “a política e a poesia eram demais para um só homem”. Pasolini carrega consigo este dilema, política e poesia, num outro tipo de movimento humano e estético, mas também destrutivo. E esta destruição, ele passa exemplar e agudamente numa narrativa amiúde distanciada e hermética como esta de Teorema.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)