Os Deserdados

Jeferson Tenerio eh um dos nomes quentes da atual literatura brasileira

03/12/2020 14:08 Por Eron Duarte Fagundes
Os Deserdados

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Jeferson Tenório é um dos nomes quentes da atual literatura brasileira. Já em seu romance de estreia, O beijo na parede (2013), Tenório afia seu verbo e sua narração como poucas vezes se teve a oportunidade de ler, em nossas letras, numa obra inicial. Dá a impressão de que a experiência de O beijo na parede foi precedida, nas buscas do escritor, de tentativas que ele deve ter deixado de lado, ou por enfado ou por qualquer falta de rumo estético nos rascunhos de ficção. De qualquer maneira, O beijo na parede apresenta um notável trabalho de depuração de sua escrita para chegar a uma espontaneidade em que tenta irmanar-se à vida, literatura e vida em parentesco. Me faz pensar numa expressão trazida pelo romancista mineiro Autran Dourado para conceituar certos trabalhos de escrita: matéria de carpintaria.

O beijo na parede é narrado em primeira pessoa por um menino negro de rua. Ele habita um cortiço porto-alegrense em que outros deserdados da sociedade se encontram: jovens prostitutas, travestis, uma velha ex-meretriz desmemoriada, um velho abandonado pela família, em suma, um puteiro à luz urbana. Há evocações da cidade do Rio de Janeiro, de onde o menino negro de rua migrou para o sul do país. O cortiço de Jeferson Tenório atualiza as notações do já velho naturalismo brasileiro de Aluísio Azevedo. Há uma grande tristeza e desesperança nas linhas elaboradas por Tenório. A tristeza começa pela oração inicial, quando o narrador refere a morte violenta do automobilista Airton Senna. Duas orações depois o narrador passa a seu caso particular: a morte da avó, dentro dum táxi, num acidente de trânsito. Mas o que preenche mesmo as andanças narrativas de O beijo na parede é a vida miserável do cortiço de garotas de programa, idosos sem eira nem beira como os meninos, o começo e o fim da vida perdidos e o meio, ilusório, de passagem.

No seu livro recente, O avesso da pele (2020), Tenório propunha um diálogo entre a primeira pessoa que narra e uma segunda pessoa que ouve, o filho narra e o pai ouve mas parece passar ao ouvir à condição de narrador subjacente. Em O beijo na parede o menino narrador se pergunta para que serve um pai.

Mas em O beijo na parede há em alguns momentos um convite para que o leitor seja o narrador, coautor. “Sei que vocês devem estar pensando que ficar alegre com uma coisa besta dessa não tem cabimento.” Em O avesso da pele o narrador recorre ao “você”, que é o pai, mas também poderia ser simbolicamente o leitor, do outro lado da escrita. Aparentemente O beijo na parede parece mais singelo na transparência de sua primeira pessoa, que em O avesso da pele se permuta com a segunda pessoa evocada; no entanto, se observado com atenção, O beijo na parede, em sua simplicidade, produz uma construção narrativa tão complexa quanto a do romance posterior. O que fica, para o leitor atento e exigente, é a coerência e a sensibilidade transformadora da estética bastante particular de Jeferson Tenório.

Cabe pensar ainda, a respeito da expressão do título do romance “o beijo na parede”, em se tratando de deserdados, ou os famosos esquecidos de um filme de Luis Buñuel, como uma forma de linguagem alternativa para a muito conhecida “beijar a lona”. É o que os derrotados fazem no ringue.

P.S.: Um dos dados de composição da história contada em O beijo na parede que Tenório repetiria em O avesso da pele é pôr nas informações do crescimento de sua personagem a leitura de determinada obra fundamental da literatura. Em O beijo na parede a personagem do narrador tem seu difícil salto fora do brejo em que a vida o meteu ao dar com o romance Dom Quxiote de la Mancha (1605-1615), do espanhol Miguel de Cervantes. Em O avesso da pele é outro romance que determina a virada de consciência da personagem do narrador: Crime e castigo (1866), do russo Dostoievski.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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