A Memoria-Barco de Lillian Hellman
Embarcar nesta extraordinaria viagem literaria que eh Pentimento faz bem em qualquer tempo
Lilian Hellman é uma dramaturga americana muito prestigiada em sua época. No entanto, suas peças são quase desconhecidas por aqui. Entre nós, ela é mais referida por seu casamento com o romancista Dashiell Hammett, por suas investidas em roteiros de cinema e pelo filme que o realizador norte-americano Fred Zinnemann fez a partir de um dos livros dela. Este livro que interessou ao cinema de Zinnemann é Pentimento (1973), um corolário de memórias fluidas que Lilian escreveu para dar o retrato estético do que ela teria vivido nos anos 30 do século passado, sua vida teatral, seu matrimônio com o áspero e distanciado Arthur Krober, os longos anos posteriores com Hammett até a doença final dele, diálogo com gente como o ensaísta Edmund Wilson, altercação com a atriz francesa Simone Signoret.
Lilian compara seu modo de encenar as memórias antigas a superposição de imagens no quadro dum pintor; um barco que está no mar aberto já não está no mar. Barco e mar evocam flutuações. A memória —toda memória— é flutuante: uma imagem antiga substitui outra, como se os fatos, os mesmos fatos se alternassem com o passar dos anos.
Em seu texto, Lilian anota sua sensibilidade na agudeza de suas palavras. Seu rigor memorialístico é também um ensaio sobre si mesma. Lilian é sua própria matéria convertida em pensamento. Li há pouco outra escritora americana, a ensaísta Susan Sontag. Susan tem uma sofisticação elitista, buscada em coisas antigas e de longes paradas. Lilian é mais americanamente pragmática: a despeito da densa poesia de suas orações. Lilian é um pouco obcecada por certo sucesso: americanamente. Ela escreve: “Penso que o fracasso de um segundo trabalho é mais prejudicial para um escritor do que qualquer outro que venha depois.” Anos depois, em suas memórias, Lilian tem, em seu olhar para cenas daquele passado, um viés cru e profundamente melancólico todavia: “O que eu queria realmente era ir para a cama e ficar lá, mas era bastante jovem para preocupar-me com a covardia, e voltei a tempo de ver William Randolph Hearst liderar seus seis convidados para fora do teatro, no meio do segundo ato, falando muito alto enquanto passavam pelo corredor.”
Embarcar nesta extraordinária viagem literária que é Pentimento faz bem em qualquer tempo: e nos tempos árduos, alivia alguns pesos.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br