A Praia de Tati

As ferias do senhor Hulot permanece ainda hoje um caso a parte no cinema

10/05/2021 22:27 Por Eron Duarte Fagundes
A Praia de Tati

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Numa das cenas iniciais de As férias do senhor Hulot (Les vacances de Monsieur Hulot; 1953), logo depois que Hulot chega ao balneário, a personagem está às voltas com seu primeiro grande problema: tem de abrir a porta para entrar no hotel, mas, dado que tem muita bagagem, não o pode fazer com a bagagem na mão; então primeiro abre a porta, mantém-na aberta, até que, bagagem nas mãos e pelo corpo, possa acessar as dependências onde o atenderão. O inusitado nesta questão cotidiana, filmado com extrema naturalidade: há uma ventania que vem do mar e, com a porta aberta, esta ventania entra no local atrapalhando as ações dos hóspedes no saguão, espalha folhas que alguns estão lendo ou nas quais estão anotando coisas, estorva a refeição, agita e descontrola as conversas dum saguão de hotel. Hulot entra com a ventania na vida dos veranistas da localidade. É um signo: Hulot, um francês discreto mas cheio de atitudes e gestos comuns que provocam transformações nada discretas em situações banais; Hulot é uma ventania inesperada na vida de todos, embora seus propósitos de aproximação sejam elegantes, gentis, nada ventosos em seus passos. Jacques Tati, o realizador francês, é também o intérprete da personagem: com seu físico atlético e sua extraordinária habilidade de pôr-se diante da câmara, num cenário, o ator Tati corresponde inteiramente ao cineasta que criou, a partir do rigoroso trabalho de enquadramento e montagem, um ritmo cinematográfico para a praia imaginada em As férias do senhor Hulot. Este ritmo é provavelmente único na história do cinema.

Nesta comédia, um dos poucos filmes em que o ranço da passagem dos anos não estragou um milímetro, Tati vai além daquilo que comediógrafos do cinema como Charlie Chaplin e Jerry Lewis puderam fazer em seus instantes mais geniais. As formas visuais simples e diretas de que se vale Tati para preencher a narrativa não impedem a chegada a uma complexidade estilística que chega a espantar. Tudo é encenado como se já estivesse lá, pronto para ser captado pela câmara; na verdade, pouco a pouco, o observador vê, por baixo das cenas, o grande esforço de construção para atingir a naturalidade do instante. Hulot entra numa casa para entregar as malas a uma dama, tropeça, seu passo ganha impulso e ele vai parar com mala e tudo do outro lado, pela porta dos fundos que está aberta, fora de casa; até que, ingênuo, dá a volta para enfim entregar as malas, sem se atrever a entrar de novo e poder tropeçar e acontecer tudo outra vez.

Um dos elementos de cena (um componente de cenário, quem sabe) é o calhambeque de Hulot: como Hulot, é um carro simples e que em sua simplicidade causa transtornos; dedicando-se a transportar veranistas e suas bagagens com seu veículo, Hulot faz deste carro uma extensão de sua própria personalidade: agradável e prático mas defeituoso e atrapalhado.

Desde o primeiro encontro com o filme de Tati, em 1980, a surpresa deste comentarista se concentrou numa ausência duma característica do cinema francês, a tagarelice constante; As férias do senhor Hulot se vale pouco das palavras (há entre os veranistas a personagem dum jovem intelectual, que diz coisas como “a burguesia é tão cheia de contradições” e vive lendo passagens de um livro para uma moça, e esta personagem de intelectual, dela zomba um pouco a narrativa de Tati), e ainda quando surjam estas palavras, ela não tem a importância da construção da imagem cinematográfica como o ângulo do quadro e as formas do corte. Eminentemente visual e notavelmente agudo na exposição de sua própria linguagem cinematográfica, As férias do senhor Hulot permanece ainda hoje um caso à parte no cinema.

A origem do nome Hulot vem duma história familiar de Tati, contada por seu filho, Nicolas. Segundo Nicolas, o pai de Tati era um arquiteto; no imóvel em que os Tati moravam, o porteiro, sempre que surgia um problema, resmungava: “É preciso chamar o senhor Hulot”. Virou um leitmotiv: como os há muitos em Marcel Proust, lembro especialmente uma fórmula do pai de Swann para o luto com sua mulher morta, fórmula que em família passou a ser usada para as coisas mais diferentes, um leitmotiv pois. Universo único do ponto de vista da estética cinematográfica, As férias do senhor Hulot é construído um pouco com as memórias do diretor/autor, um rosário tatiano, assim como temos o imaginário ficcional proustiano. Dois mundos, Tati e Proust, grandes, distantes, feitos dos retalhos de seus autores mas levantados com extremos rigor, tempo e paciência.

Num artigo de 1956, o crítico brasileiro Paulo Emílio Sales Gomes, ao ver o filme de Tati em seu lançamento em São Paulo, assim fecha as observações: “e as aventuras de herói de Tati durante as férias são, em definitivo, um triunfo da fantasia libertadora”. Num texto de março de 1980, um relançamento em Porto Alegre do filme de Tati, outro crítico brasileiro, Tuio Becker, anota: “Aquele sentido de diversão que o cinema —ao longo dos anos — veio perdendo, pode ser reencontrado em seu estado puro no filme de Tati”. Entre a fantasia que liberta (há um baile de fantasia numa sequência mais para o fim) e uma linguagem que apresenta o senso cinematográfico a uma reflexão transparente em torno do entretenimento, As férias do senhor Hulot vai semeando uma influência quase secreta sobre nossa maneira de pensar/ver um filme.

 

P.S.: As férias do senhor Hulot é uma proposta cinematográfica que resiste tanto às sofisticações estéreis do cinema quanto às facilidades mecânicas do humorismo televisivo muitas vezes badalado hoje em dia de forma tão ingênua por, curiosamente, espíritos sofisticados.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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