A Membrana da Imagem
O social em Se Nada Mais Der Certo eh inserido numa estetica de vanguarda
O que mais perturba o olhar do observador em Se nada mais der certo (2008), filme rodado por José Eduardo Belmonte, são certas membranas nebulosas da imagem, onde algumas granulações da fotografia e dos movimentos de câmara, outras sinuosidades do vaivém labiríntico da imagem, acrescidas de um roteiro rotativo e enigmático e elíptico atrapalham a linha reta que deveria dirigir a vista do espectador para a imagem na tela —ou seja, adeus objetividade, a ligeireza saltitante das sequências não permite que se tenha clareza do que se está vendo no filme. É curioso este procedimento anárquico de Belmonte, pois a todo o momento Se nada mais der certo refere as urgências sociais, o pão tirado da boca dos miseráveis, mostra o Presidente da República em seu discurso vazio, começa aludindo às falsificações da democracia a partir duma frase do francês Rousseau que epigrafa o próprio filme, tergiversa contundentemente dentro de uma filosofia social. Mas o social em Se nada mais der certo é inserido numa estética de vanguarda, sua força não vem da obviedade do discurso, mas duma linguagem recriada; o importante é a “redação cinematográfica” e não os eventuais assuntos que aborda. Num certo sentido, Belmonte refaz O bandido da luz vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, que era também um filme desglamurizado, um hino visceral do terceiromundismo, do subdesenvolvimento, um estágio conturbado de cinema brasileiro; como Sganzerla, Belmonte repensa Jean-Luc Godard, montando com áspera liberdade seu filme.
Em seu trabalho anterior, A concepção (2006), Belmonte já tateava nesta experimentação desconcertante. Mas em Se nada mais der certo os processos são radicalizados: é onde se encontra o estômago formal do cinema brasileiro. Um filme Filmefobia (2008), de Kiko Goifman,discute a imagem do medo, enquanto Se nada mais der certo vai discutir as membranas da imagem, aquela “pele fina” do quadro que está ali para ofuscar a visão do espectador.
Os tipos em cena são crus e os atores que os vivem são característicos. João Miguel como o taxista é sua persona de sempre. Caroline Abras corresponde plenamente aos tons esquivos de sua personagem, uma criatura chamada Marcin e que é traficante e que é uma fusão perturbadora de homem e de mulher. E Cauã Reymond como o jornalista desempregado Léo se despe de seus artifícios televisivos para criar seus próprios artifícios de um cinema duro e por vezes de difícil digestão para o paladar padronizado. E também Luiza Mariani como uma mulher viciada, com um filho pequeno, tem um considerável peso interpretativo.
Entre as muitas cenas que caracterizam a dureza de Se nada mais der certo, cabe realçar um oblíquo bacanal entre Caroline Abras, Cauã Reymond e João Miguel; a câmara desliza à socapa entre os intérpretes, como se fosse um sonho. O sexo é mais sugerido do que mostrado, mas tem uma força erótica que impressiona. É Pasolini puro em sua perversão.
Se nada mais der certo é um destes filmes “fora de catálogo” que topam extrema dificuldade em dar com seu público.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br