Escavando Roma
Apesar de todos os exageros, a naturalidade documental eh um dos achados de Roma de Fellini
Roma de Fellini (1972) é uma extravagância cinematográfica que teria tudo para dar errado: vaga para cá e para lá sem roteiro, sem os pés no chão; evita a utilização dramática dos episódios pitorescos, tornando-os peças de contemplação documental embora se alie a uma estrutura de espetáculo comercial; exagera sempre, foge do tom certo, exacerba nos significados simbólicos, é visualmente desmesurado. Por que dá tão certo, se Fellini tem aqui um rumo mais florestal que aquele de Amarcord (1973), este sim fácil de explicar por que é uma obra-prima? Em certos filmes de Fellini, Julieta dos espíritos (1965) e A cidade das mulheres (1980), as protuberâncias barrocas são problemáticas, a despeito de sua constante inventividade de imagens; em Roma esta perigosa inventividade (que é paroxísmica) atinge um ponto de deslumbramento do qual o espectador não logra retornar: por mais gratuito e fácil que possa parecer este esquisito passeio cinematográfico romano, o assombro duma obra de arte, romana e imperial, vai permanecer para todo o sempre na memória do cinéfilo.
Roma de Fellini é um filme revolucionário, experimental mesmo, ao estabelecer a dialética documentário-ficção; a parte ficcional da narrativa é um documentário de época e a parte documentária é divertidamente ficcional. Mas —revolucionário, experimental, novo ontem como hoje e amanhã— Roma de Fellini não estorva a habitual paixão visual do cinema comercial, nunca perturba seu poder de comunicação com o público: ao contrário, por exemplo, do brasileiro Glauber Rocha, aquilo que se revoluciona em Roma de Fellini não tem o travo da dificuldade de assimilação do observador de sempre.
A ausência de carga dramática das sequências de Roma de Fellini certamente ecoa num filme recente, Maria Antonieta (2006), da americana Sofia Coppola, onde a cineasta se recusa a utilizar os eventos históricos para fins dum drama narrativo. Fellini passeia com sua câmara inspiradíssima por cafés ao ar livre, bordéis antigos, trânsitos pesados dos anos 70 como quem simplesmente quer deslumbrar-se com a vida: contemplar, puramente.
Se Roma de Fellini é um delírio sem norte que topa sentido tão-somente na genialidade de Federico Fellini (Casanova de Fellini, 1976, também funciona assim), o espectador pode buscar um oculto rumo nesta paranoia de imagens no confronto que Fellini faz entre a Roma dos anos 40 (a juventude do diretor) e a Roma dos anos 70 (quanto Fellini, já cinquentão, rodava seu filme), ambas as Romas metamorfoseadas por seu onirismo lírico e transcendente. O amor livre dos jovens de 1972 numa escadaria romana é confrontado com o amor subterrâneo dos adolescentes da década de 40 em dois bordéis, um estridente e louco que propicia a Fellini delirar sem limites, outro luxuoso onde seu senso de época e bizarrice não deixa de estar presente. Lá pelo final, depois da magnífica sequência dos figurinos eclesiásticos onde o satírico grotesco do cineasta chega a um de seus pontos mais elevados, há duas aparições documentais: Gore Vidal, num café, escritor americano vivendo em Roma, é a presença contemporânea (anos 70); Anna Magnani, surpreendida pela câmara numa rua escura indo para casa, é um retorno ao passado, os clichês sobre Anna lançados pelo narrador-over (voz de Fellini) recapturam o sentido de Magnani como a mãe romana estabelecida pelo italiano Roberto Rossellini em Roma, cidade aberta (1945) e depois reaproveitada pelos italianos Luchino Visconti em Belíssima (1951) e Pier Paolo Pasolini em Mamma Roma (1962). Quando Anna, depois das metáforas constrangedoras que Fellini lhe lança, responde irônica: “Vai dormir, Federico. Eu não acredito em você.”, é este passado do cinema italiano que vê com desconfiança o cinema certamente mistificador que Fellini então estava fazendo. Mistificador por sua excessiva carga de símbolos, mas seguramente impossível de deixar de amar por sua volúpia estética.
Coroando Roma de Fellini (depois dos bordéis, depois da moda eclesiástica, depois dos lentos e longos burburinhos espreguiçadores dos cafés ao ar livre), temos a acelerada circulação de motocicletas da sequência final, o êxtase dos movimentos de câmara, a tensão crescentemente delirante e obscura das imagens. Como vários filmes de Fellini desde Oito e meio (1963), Roma de Fellini é também metalinguagem documental, Fellini aparece em cena dirigindo sua equipe ou conversando com estudantes sobre o sentido social de seu filme em construção, aparece a voz de seu operador perguntando se a câmara deve seguir um ônibus de turistas idosos, Fellini responde desabusadamente que sim, o filme se aproximando daquelas criaturas para se ir construindo. Aí observamos outro paradoxo felliniano: apesar de todos os exageros, a naturalidade documental é um dos achados de Roma de Fellini.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br