O Cinema e o Resgate do Tempo
O existencialismo de Inverno tem caracteristicas nossas, unicas
Nas imagens finais de Inverno (1983), narrativa cinematográfica dirigida por Carlos Gerbase, a personagem central, cujas reflexões em off circulam por boa parte do filme, joga algumas ideias que parecem transposição para a década de 80 dos ensinamentos do Eclesiastes: foi-se aquele inverno, mas a cidade e os invernos permanecerão; as personagens, tais como existiam na época, deixarão de existir. A partir da revisão do filme de Gerbase, é possível desenvolver-se um conceito: só a obra de arte pode resgatar o tempo, que nos escapa sempre. Aqueles espaços, aquelas formas de ser só podem ser captados nestas imagens que agora vemos; os cenários da cidade, as expressões e os grupos sociais “já eram”, para usar duma sintaxe hoje anacrônica. “Acham-se no tempo, e não no espaço, as gratas paisagens” escreveu certa vez o romancista Cyro dos Anjos. O filme de Gerbase atinge, para os que vivemos aqueles anos na cidade, este tempo que uma visita aos cenários hoje modificados não comportam mais. Inverno é um dos filmes de uma geração de cinéfilos que teve em Deu pra ti, anos 70 (1981), de Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil, o começo do jogo propriamente, a despeito de algumas outras escaramuças; os superoitistas da praça tinham ambições e limites, como todos os que vivíamos na província naqueles anos indefinidos. Aquele grupo jovem que então fazia cinema por aqui era composto de afins de toda uma geração pequeno-burguesa que ia atrás de livros, filmes, profissão e amores: de uma certa maneira éramos todos, e não somente o grupo que tomava da câmara, que fazíamos aqueles filmes. Werner Schünemann, que interpreta o papel do rapaz não-nominado de Inverno, antes dirigira Coisa na roda (1982). Os filmes se pareciam, e se diferenciavam, pelas características de seus realizadores. Inverno, apesar de ainda contar com o sentido coletivo de fazer cinema, aquele senso duma comunidade cinematográfica, é o mais hedonista daqueles filmes: a personagem tem um individualismo mais exacerbado. Há coisas do existencialismo em Inverno que levam adiante a proposta de um cinema do Sul. Não há, é claro, o existencialismo de As amorosas (1968), de Walter Hugo Khouri: embora, como Khouri, Gerbase caracterize sua criatura muito pelos livros e músicas, citados em profusão; no caso de Gerbase, citações a filmes até são mais constantes que em Khouri, e algumas destas referências trazem até hoje a reconstituição duma época de quem via filmes então (como num diálogo em que a personagem fala duma ida ao cinema Coral para ver A filha de minha mulher, filme francês de Bertrand Blier). Não há também em Gerbase o existencialismo europeu como um todo: embora, como todos nós, o cineasta também bebesse nesta fonte. O existencialismo de Inverno tem características nossas, únicas, talvez só acessíveis em sua totalidade à intuição daqueles que privamos com pessoas à semelhança das personagens do filme (a garota que resiste às investidas sexuais, a garota liberada, a garota que reclama do sexo na literatura ou no cinema, a garota encontrada numa viagem, garotas, garotas, e também os grupos estudantis diversificados).
Depois de mostrar alguns planos da cidade onde se passará sua história (alguns dias do inverno de 1982 numa cidade do extremo sul do país, onde Inverno foi rodado), as imagens buscam a personagem de Werner (que não tem nome no filme) no meio da multidão que anda pelas ruas; e, num determinado plano, detém a criatura diante da loja da Falk’s. Surgem as primeiras palavras da personagem, estas palavras fora do quadro também ajudam a narrar: “As cores na vitrine da Falk’s me feriam os olhos.” Ao dar com as cores iniciais de Inverno —desglamurizadas, desfocadas, cheirando a um inverno distante—, o espectador desta terceira década do terceiro milênio, este espectador cujos olhos são bombardeados cotidianamente por uma opulência visual cada vez mais tecnicista e engessada dos filmes que se veem, este espectador pode chocar-se, incomodar-se; este observador ultratecnológico foi construído para as cores da vitrine da Falk’s, ou seus sucedâneos nas décadas que viriam.
Para o espectador retirado dos anos 80, como este comentarista, Inverno é acentuadamente o resgate do tempo pela obra de arte, aquilo que o espaço revisitado já não pode dar. Certas situações e pessoas com que o herói de Gerbase/Werner se relacionou são as mesmas (ou quase) que o comentarista encontrou naqueles anos, em ambientações semelhantes; não somente os cenários, as criaturas, mas algumas expressões verbais trazem o sobressalto do tempo (o verbo “acabar” no sentido de gozar sexualmente, ter orgasmo, que a personagem usa após uma relação carnal Cláudia, uma das gurias do grupo, interpretada por Cleide Fayad, este verbo, “sabe que eu nunca tinha visto uma guria acabar assim, um troço de fissura, sei lá, quase violento” diz ele a ela, e a situação como um todo, parece sair duma caverna estranha —era assim que falávamos, era assim que vivíamos). Chuva, frio, ruas molhadas, exasperação, enfado. As sessões de arte no cinema Bristol. A namorada de Montevidéu e imagens da capital uruguaia, referências às sessões de cinema ali buscadas. Uma praia no inverno: deserta, monótona. E a namorada do herói, Mariana, a dificuldade de convencê-la a “trepar” (outro termo quase anacrônico).
O retrato humano central de Inverno é este. Entre o herói intelectualizado e sedento de sexo e a namorada mais simples e resistente ao amor carnal (o papel de toda a vida, creio, de Luciene Adami está mesmo neste antigo Super-8 gaúcho, a despeito de outros sucessos que ela buscou em outras plagas). Numa cena em que ela lê um livro de Rubem Fonseca, que o namorado lhe deu, ela se queixa espinafrando o texto: “Esse negócio aqui. Sexo pelo sexo. Pornografia. O cara tá escrevendo só sobre sexo. Não tá explicando nada.” Qualquer semelhança com algo que vivemos na época não é mera coincidência; são comportamentos reproduzidos socialmente. Diante dum filme ou dum livro em que o elemento sexual abunda, a discussão assoma, por caracteres humanos que se opõem.
Uma das cenas mais curiosas de Inverno é aquela em que Gerbase presta sua homenagem aos críticos de cinema da cidade, filmando-os em seus locais de trabalho. A sequência começa quando o herói (jornalista de formação, mas empregado duma imobiliária) vai fechando os olhos e parece sonhar, sonhar que é jornalista e tem como colegas os comentaristas de cinema dos jornais de então. Vemos Goida a falar rindo ao telefone. Hélio Nascimento é visto a escrever. P.F. Gastal datilografa diante da câmara. Luiz César Cozzatti lê um jornal e rabisca anotando. Tuio Becker lê algo que não vemos o que é (não aparece na imagem o que ele está lendo, só a face de Tuio deslizando os olhos por algo abaixo de seu queixo, no final do plano Tuio levanta os olhos para a câmara/o protagonista), a personagem é vista no plano seguinte a acordar de seu sonho de jornalista. Nesta sequência dos jornalistas Gerbase estabelece as relações entre escrever cinema e fazer cinema na província na época; os aspectos bem sucedidos desta sacada se materializam muito na capacidade de montador de Giba Assis Brasil, articulando conexões desde a duração de cada plano até as ações das personagens (ou figuras reais) diante da câmara. (Giba foi também assistente de direção no filme e escreveu um precioso diário de filmagem em que, ao modo duma crônica diária, emula a própria maneira do filme pronto, na tela, um retrato de época que nos transporta para a cidade de nossa memória). Mas nesta sequência dos críticos surge um dos espantos deste analista: isto de filmar (ou inserir) os críticos da cidade numa obra de ficção foi um recurso do francês Éric Rohmer em La sonate à Kreutzer (1956), um média-metragem extraído da novela anticonjugal do russo Lev Tolstoi: Rohmer filmou os escritórios dos Cahiers du Cinéma, pescando cenas com André Bazin, Claude Chabrol, François Truffaut. Há uma identidade curiosa entre a extroversão de Goida ao telefone em Inverno e a delirante intervenção de Truffaut ao telefone em La sonate à Kreutzer (a presença do telefone, o jeito dos intérpretes). O espanto mesmo: até 2013 o filme de Rohmer permaneceu inédito no mundo todo; não imagino Gerbase invadindo os arquivos da Cinemateca Francesa para ver este Rohmer e depois tê-lo como inspiração para suas filmagens dos críticos daqui. Tirante esta hipótese absurda, resta uma outra, mais sinuosa: pode haver uma afinidade de ideias entre o cinema de Rohmer e o de Gerbase desde esta fusão entre o banal cotidiano e algum rompante filosófico. É também de observar que, ao dividir os blocos narrativos titulando-os com os dias da semana, Inverno percorre a mesma estrutura de O joelho de Claire (1970), de Rohmer: com a diferença entre os tons fechados do inverno do sul do Brasil em Gerbase e a luminosidade do verão francês em Rohmer. Então, esta assombração que na cabeça do comentarista liga os críticos daqui em Inverno aos críticos parisienses em La sonate à Kreutzer nascem talvez de idêntica etnia cinematográfica.
A revisão de Inverno sedimenta uma percepção: Gerbase adotou uma extraordinária fidelidade ao cinema ao longo dos anos. Pôs diante do espectador uma filmografia, um postulado de vivência cinematográfica. Talvez por aqui somente Jorge Furtado se assemelhe a Gerbase na proposta de constância duma obra cinematográfica. Outros superoitistas daquela geração, como Nelson Nadotti e Werner Schünemann, saíram da província, por motivos variados foram parar na televisão. Giba Assis Brasil preferiu entregar-se, por gosto, à tarefa de montador de filmes, cuja excelência sempre se pode comprovar em todos os filmes que Giba montou, e que de alguma maneira o torna correalizador destes filmes. Gerbase (como Furtado) é o cineasta, o homem fiel à direção de filmes.
O conto O argonauta, escrito pelo próprio Gerbase, deu origem ao roteiro do filme. É um conto narrado em primeira pessoa; Gerbase soube fazer com raro senso a transposição das divagações da página escrita para a dinâmica dos gestos cinematográficos. Fez algumas alterações de conteúdo na passagem do texto literário para o conto (a praia aonde vão no inverno no conto é Arroio do Sal, no filme é Mariluz, um balneário ainda mais isolado e vazio; o filme que o herói vai ver com Isabel em Montevidéu no conto é Annie Hall, no filme é Manhattan, mas ambos prestam tributo a uma das admirações do cineasta gaúcho, o americano Woody Allen); estas alterações não significam mexer em alguma essência da narrativa.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br