Cinema e Sociedade: Paralelas Que Se Cruzam

A Sociedade Faz o Cinema: na coluna Cinemania, Eron Fagundes diz que “O cinema que se faz é um produto social de seu tempo”

12/11/2012 00:00 Da Redação
Cinema e Sociedade: Paralelas Que Se Cruzam

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O cinema que se faz é um produto social de seu tempo: tal cinema não poderia existir se não em sua época. O esforço de um filme para analisar a sociedade que o gerou muitas vezes se converte de causa em efeito: a realização reflexiva é instintivamente metáfora ou resultado de tudo aquilo que difusamente busca analisar.

Um bom exemplo. O cinema documental do brasileiro Eduardo Coutinho. Dentro de seu cinema, a trajetória e a existência de seu filme mais marcado, Cabra marcado para morrer (1984), reposto em cartaz nos cinemas brasileiros. No começo dos anos 60 Coutinho preparava o filme Cabra marcado para morrer (1964) para tratar da vida do líder camponês da Paraíba João Pedro Teixeira, assassinado por latifundiários nordestinos; como João Pedro estivesse morto, foi escalado um outro campônio para o papel central,  mas os demais papéis, incluindo a viúva de João, Elizabeth, viviam a si mesmos, dentro de padrões neorrealistas. O golpe militar de 1964 interrompeu este projeto cinematográfico e espalhou pelo mundo tanto os idealizadores do projeto quanto os nove filhos de Elizabeth. Vinte anos depois, Coutinho vai no encalço das pessoas que estiveram no filme de 1964, especialmente Elizabeth, a viúva. Seu novo Cabra marcado para morrer é um produto da abertura política dos anos 80. De uma certa maneira, ao recapturar Elizabeth e os destinos de seus filhos e as reminiscências das antigas filmagens e a sombriedade política de então, Coutinho acaba estabelecendo criticamente a existência de seu cinema (este filme temporalmente duplo, especialmente) como um reflexo dos passos da sociedade brasileira ao longo das duas décadas: a forma como um certo cinema foi mergulhado em catacumbas de hibernação é também a forma como um certo grupo de pessoas foi emparedado nestas mesmas catacumbas. Mas esta reflexão crítica de Coutinho é pleonástica: os caminhos e os descaminhos de nossa sociedade já estão incrustados na própria trajetória de Cabra marcado para morrer, o  antigo e o novo. Em 1964 um golpe militar interrompe um filme. Em 1984 a distensão política estimula um cineasta, Coutinho, a visitar seu passado (tanto humano quanto cinematográfico) com olhares novos mas sem perde a essência de seu ser. A volta de Coutinho ao cinema e à vida que o cinema representa corresponde à volta de exilados, como o político gaúcho Leonel Brizola, aos berços da sociedade brasileira pela mesma época de “lenta e gradual abertura política”. O paradocumentário em que se transformou o cinema de Coutinho a partir de Cabra marcado para morrer (as motivações das entrevistas cruzadas pela montagem, a dissolução do autor-narrador-entrevistador nos dilemas das imagens) substitui a narrativa de cunho sociológico do filme dos anos 60, como identificou Jean-Claude Bernardet em seu ensaio Cineastas e imagens do povo (1985). Na advertência ao leitor que introduz o livro, Bernardet assinala: “Concluí este ensaio antes de ter visto Cabra marcado para morrer. Se tivesse escrito depois, a minha perspectiva de trabalho teria provavelmente sido outra.” E acrescenta que o filme de Coutinho é um “divisor de águas”. Cabra marcado para morrer é também fundamental porque é ele próprio um retrato cinematográfico da própria sociedade brasileira; ao expor desde seu início as fissuras de sua realização desde o filme primitivo que o gerou, este filme de Coutinho abre dentro de si a questão metafórica: cinema e sociedade são paralelas que se cruzam, o que pode ser, na matemática convencional, inviável, mas na poética da crítica cinematográfica é bem palpável.

Em dezembro de 1984 eu estava distraidamente no Rio de Janeiro e fui  aos cinemas Leblon ver dois filmes brasileiros. Comecei com Cabra marcado para morrer, no Leblon 1. E terminei, já ao anoitecer carioca, vendo Noites do sertão (1984), do mineiro Carlos Alberto Prates Correa. Na época, a luminosidade poética de Prates Correa poderia parecer mais avançada que a iluminação precária e adrede tosca de Cabra marcado para morrer. Os anos se encarregaram de revelar a eternidade de Cabra e algum resquício de envelhecimento em Noites. Enfim, a sociedade faz o cinema.

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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