O Desespero Diante da Estupidez
Nao se pode falar deste filme bosnio sem aludir ?s caracteristicas muito proprias de estar-em-cena da atriz Jasna Djuricic
Os aspectos documentais de uma narrativa de ficção como Quo Vadis, Aida? (2020), realizada pela diretora bósnia Jasmila Zbanic, se alicerçam, desde os primeiras imagens, no uso duma câmara trêmula, em que a junção dos fotogramas é mais lenta para formar o plano e de propósito desfocada, com estes recursos formais semiamadores busca achar um correspondente de estilo para o caminhar trôpego e desritmado de grupos étnicos dum país tomado por situações bélicas bastante descontroladas. A história contada ao longo do filme se passa em 1995, quando os soldados sérvios decidiram exterminar cidadãos bósnios em massa; dentro da realidade histórica, a cineasta-roteirista cria sua situação ficcional, uma professora bósnia, contratada pela ONU como tradutora nas negociações de paz dos conflitos, lá pelas tantas se vê às voltas com um desespero familiar, seu marido e seus dois filhos são levados em caminhões sérvios para, sabe-se, a matança. Quo Vadis, Aida? observa com rigor e um olhar desesperado as inquietações e os movimentos de Aida, entre suas obrigações sociais e profissionais e seu mergulho no inferno familiar; a melancolia trágica das sequências finais sublinham este tenso compromisso duplo da personagem, histórico e individual; como pouco filmes, talvez somente aqueles feitos por diretores de gênio, Quo Vadis, Aida? concilia com perfeição esta característica estética ontológica, a função coletiva da ação de Aida e sua realidade íntima e familiar intransferível. Com seu peculiar estilo de filmar, Jasmila aproxima sua ficção de seu espelho real, sem as tergiversações habituais do cinema americano baseado em fatos reais.
O foguete humanista de Quo Vadis, Aida?, acompanhando uma beligerância no coração dum país em que as pessoas passam a ser formigueiros, faz com que evoquemos outras realizações cinematográficas em que este telescópio fílmico foi utilizado. Algumas antigas. O ocaso de um povo (1981), do alemão Volker Schlondorff, expunha a calamidade sob fogo cruzado detonando uma população no Líbano. Um olhar a cada dia (1995), do grego Theo Angelopoulos, traz ligeiras notas da situação sombria nos Balcãs, a mesma região de Quo Vadis, Aida? Uma obra recente. Zana (2020), da albanesa Antoneta Kastrati, traz lembranças fugidias e fantasmagóricas de um outro grupo étnico da extinta Iugoslávia, os albaneses kosovares. São circuitos cinematográficos parentes de Quo Vadis, Aida?
Não se pode falar deste filme bósnio sem aludir às características muito próprias de estar-em-cena da atriz Jasna Djuricic. Ela parece criar e conduzir, em boa parte, o jeito desglamurizado da câmara conduzida por Jasmila. Em alguma instância Jasna me remeteu a uma antiga performance cinematográfica da intérprete polonesa Krystyna Janda em O homem de mármore (1977), de Andrzej Wajda.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br