Os Encantos de Hollywood
Em O show deve Continuar Bob Fosse revela-se um felliniano empedernido
Para um analista acostumado a um olhar torto para as produções hollywoodianas, reencontrar (ainda que em tela pequena, o que não é o mais recomendável para um filme em que os movimentos apanhados por alguns planos gerais obedecem a uma perspectiva da retina), O show deve continuar (All that jazz; 1979), obra-prima que foi o penúltimo trabalho dirigido pelo norte-americano Bob Fosse, é uma experiência provocativa. Fosse junta os cacarecos do espetáculo hollywoodiano, estrutura um sábio roteiro dentro das convenções da indústria e, com a sutileza e a acuidade de sua direção cinematográfica, realiza algo de exultante beleza que é ao mesmo tempo uma revolução no cinema americano.
Em O show deve continuar Fosse revela-se um felliniano empedernido. Máscaras, cenários barrocos e fantásticos, mulheres carnudas, o ego contagiante duma imagem-baile: tudo traz ao celuloide a marca da influência de Federico Fellini. Mas Fosse adapta a extravagância latina de Fellini à sua personalidade de cineasta americano, pragmático, perdido entre os realismos de sua vida e a fantasia de sua condição de artista. Um certo humor excessivamente americano (aquele humor americano de televisão) pode estorvar aqui e ali a fruição do espetáculo por parte do público brasileiro. Mas é um pequeno detalhe que não enodoa a grandeza do filme.
Propondo-se como uma reflexão sobre o espetáculo cinematográfico, O show deve continuar refaz os labirintos formais de Oito e meio (1963), de Fellini. Os brilhos italianos de Fellini, com uma certa característica sombria europeia, são, em Fosse, substituídos pelos brilhos desnorteantes de Hollywood: o número final, rodado num cenário cheio de pontos luminosos, é evidência desta substituição. A regressão do musical americano, que teve em O show deve continuar um de seus picos, pode ser constatado quando uma realização como Chicago (2002), de Rob Marshall, é saudada como novidade; o roteiro não filmado de Fosse serviu de base para que Marshall, artesão míope, compusesse sua paródia felliniana superficial. Recomenda-se a visão paralela dos dois filmes para se estabelecer a diferença.
Propondo-se como uma alegoria cinematográfica da morte, O show deve continuar utilizou algo em moda na época (fim dos anos 70 e início dos anos 80), a dança, para dizer-nos que todos os ensaios que nos fazem felizes devem ser tentados para que nos saiamos bem no espetáculo da morte. A personagem do cineasta Joe Gideon (alter ego de Fosse) entrega-se ao trabalho e à vida com uma luxúria desesperadora; a devoradora dama de branco, a caracterização da morte e sua confidente ao longo do filme, será mesmo sua amante derradeira, após tantos remédios, tantos cigarros, tantas correrias em set de filmagem, tantos desgastes emocionais com mulheres.
O zíper que fecha o saco plástico com o cadáver da personagem na imagem final é brutal e apoético: cínico e pragmático. O contraponto é a magia do cinema, algo de sonho que ainda pode ser vislumbrado na materialista civilização americana.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br