A Estranha no Ninho, ou a Sensibilidade a Hollywood
No ritmo do coracao cumpre bem seu papel ao traduzir uma historia francesa para os artificios a sombra de Hollywood
Poucas vezes na história do cinema se pôde caracterizar tão bem os abismos entre o sistema americano e o jeito francês de filmar quanto ao ver CODA; no ritmo do coração (CODA; 2021), dirigido por Siân Heder, depois de ver A família Bélier (2014), do francês Éric Lartigou, um filme atrás do outro como experiência cinematográfica. No ritmo do coração é apresentado como uma refilmagem do filme francês. De fato: o roteiro é extraído da obra predecessora; as características estereotipadas das personagens buscam lá seus esqueletos, boa parte das situações e dos diálogos são quase copiados da família francesa, sobretudo o centro temático (uma garota que fala e ouve nasce numa família de surdos-mudos, os pais e um irmão, e tem de servir de ponte facilitadora entre seus parentes sem audição e fala com o mundo cada vez mais da tagarelice) e o propósito de buscar a emoção do observador pela identificação com o que lhe pode ser diferente. O filme americano toma algumas liberdades para com a narrativa francesa: uma delas, no francês o pai surdo se candidata a um cargo político, no americano este dado é substituído pela criação duma cooperativa de pescadores; e a região de campo da campanha francesa aparece naturalmente no filme americano substituída por uma orla dominada por pescadores, entre estes os pais da personagem central. O filme americano mantém alguns trechos anedotários: a cena no consultório médico em que a filha falante deve traduzir para os pais uma recomendação médica diante duma micose na virilha, não manter relações sexuais por algum tempo. Uma diferença perceptível: a garota que fala (Duby Rossi se chama aqui, correspondendo a Paula Bélier dos franceses) parece menos interligada com seus pais, uma autêntica estranha no ninho; isto talvez se deva ao fato de que os atores que vivem os surdos-mudos no filme americano são de fato surdos-mudos.
Pode-se dizer que No ritmo do coração é um filme que surpreende dentro dos processos habituais de refilmagem no cinema americano. Ainda que mantenha os passos do filme original, o que o espectador vê é um filme novo, diverso, capaz de interessar não por repetições mas pela invenção da direção (quem dirige é uma mulher) e dos atores. O fato de utilizar surdos-mudos para interpretar surdos-mudos não confere necessariamente mais autenticidade ao filme americano que ao francês, pois os atores franceses são bons e fazem exalar naturalidade; além da questão da inclusão social e cinematográfica dos surdos-mudos, esta opção do filme (que, dizem, foi exigida por Marlee Matlin, que vive a mãe e foi a primeira do elenco escolhida) cria aquilo que é o impasse temático: o descompasso que vai surgindo, à medida que os anos passam, entre a filha falante e os seus, a estranha no ninho exótico.
Evitando o quanto possível cair nos maniqueísmos de valor, pode-se dizer que No ritmo do coração cumpre bem seu papel ao traduzir uma história francesa para os artifícios à sombra de Hollywood. Longe do classicismo sentimental do filme francês, o filme feito por Siân Heder para produtores americanos (ainda que com o envolvimento dum produtor da obra francesa nas negociações para uma narrativa derivada) equilibra-se razoavelmente entre o controle frontal e o transbordo emocional fácil. Da mesma maneira que a realização francesa.
P.S.: Algumas alterações de texto e imagens. Na cena da consulta médica no filme francês a mulher diz: "”Minha vagina está pegando fogo.” (por causa dos fungos) No filme americano é o homem quem explica ao médico: “Meu saco está pegando fogo.” Nesta cena do médico, as personagens devem evitar fazer sexo por um tempo, aconselha o doutor: três semanas no francês, duas no americano. As últimas imagens do filme francês acompanham a garota correndo feliz e ansiosa após a despedida dos pais e o plano derradeiro congela num primeiro plano o rosto da atriz. No filme americano, as imagens que fecham o filme se debruçam sobre o carro que se afasta na estradinha do lugarejo, após a despedida dos pais.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br