O Mais Assustador dos Filmes
Influente no cinema, Os deuses malditos teve suas sombras em filmes diferentes entre si
O mais assustador da sutileza ética e estética do cineasta italiano Luchino Visconti em Os deuses malditos (La caduta degli dei; 1969) nasce de algo que se entranha na narrativa de maneira imperceptível, sem lastro formal, como um vapor atmosférico milagrosamente criado pelo gênio: Visconti fala do nazismo alemão não como um processo historicamente localizado ou um passado, embora o historicismo sirva de base para a recomposição de época refinadamente barroca, o nazismo que se vê no filme de Visconti é permanente nos moldes da sociedade que conhecemos, estratificada em classes (quase castas), uma radiografia destas escusas eternas relações entre a industrialização e o autoritarismo criminoso dos nazistas (copiado sob camuflagem ao longo das eras por tanta gente). É um pouco como se o espectador estivesse assistindo a um documentário da sociedade de nosso tempo, pouca coisa mudou, talvez tenha mudado somente em algumas superfícies.
Os aspectos panorâmicos da encenação de Visconti concentram-se numa mansão da aristocracia germânica nos tempos anteriores à formação do nazismo e depois segue pelos anos de cinismo e violência do próprio Estado nazista. O rito cinematográfico da narrativa de Visconti é necessariamente grandiloquente: mas nunca é fora de tom ou ausente de profundidade estética. A grandiloquência já está incrustada, desde os acordes iniciais, na música de Maurice Jarre, estendendo-se pela estudada fotografia de dois mestres peninsulares, Armando Nannuzzi e Pasqualino de Santis; o brilha da composição cênica de Visconti costura os vários elementos de dramaturgia cinematográfica. Entre estes elementos, as caracterizações dos intérpretes, com gestos e faces que vão impondo ao filme sua relação atemorizante com o observador. O intérprete de Visconti submerge no cenário: há uma tensão estilística aí. Dirk Bogarde percorre a perversidade mutante de sua personagem de forma enviesada. A bergmaniana sueca Ingrid Thulin, na pele da baronesa Sophie von Essenbeck, é às vezes uma coleção de imagens fantasmais. Visconti traz aqui pela primeira vez um de seus primeiros achados, o ator Helmut Berger, então iniciando no cinema; ele vive Martin, o filho da baronesa, e interpreta duas cenas perigosamente amorais: quando vai praticar pedofilia com uma criança (menina) dum apartamento vizinho e na sequência da relação incestuosa entre Martin e sua mãe Sophie (o incesto já fora tratado por Visconti em Vagas estrelas da Ursa, 1965, aqui entre irmãos). Lá pelo fim, Visconti propõe longos e incisivos movimentos de câmara que captam cenas de orgia sexual, um dos lados do submundo do nazismo.
Influente no cinema, Os deuses malditos teve suas sombras em filmes diferentes entre si. Entre eles, O porteiro da noite (1974), da italiana Liliana Cavani, Cabaret (1971), do americano Bob Fosse, e mesmo O ovo da serpente (1979), do sueco Ingmar Bergman. Nenhum deles, todavia, atinge a estatura estética, visionária, constante deste que é um dos cumes da arte de Luchino Visconti.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br