Brasil, Um Pais Alegorico
Medida Provisoria eh na verdade um grande sarcasmo cinematografico em torno dos sofismas das elites brasileiras
Antes do escrito: Foi o filme de reabertura da sala do CineBancários, em Porto Alegre, fechada desde o começo da atual pandemia. Na sessão das quinze horas desta sexta-feira santa, um público expressivo tanto por sua quantidade quanto por sua dedicada atenção compareceu.
Em sua primeira experiência como diretor de cinema, Lázaro Ramos (um dos principais atores brasileiros de hoje) busca um universo que ele já conhecera antes, uma peça de teatro que faz alguns anos ele encenara nos palcos. Medida provisória (2022) traz para o cinema a alegoria futurista do dramaturgo Aldri Anunciação em sua peça Namíbia, não! Com senso de oportunidade em relação ao momento brasileiro e à atualidade de certos assuntos, Lázaro propõe em seu filme uma trama cujo simbolismo de intenções não descaracteriza o ataque frontal de sua visão das coisas, investigando nosso comportamento atual para com a escravidão e o racismo; é verdade que o jogo entre o símbolo e o real emperra no começo o senso cinematográfico, mas lá pelas tantas engrena, adquirindo uma volúpia que toma conta dos sentidos do espectador.
Medida provisória é na verdade um grande sarcasmo cinematográfico em torno dos sofismas das elites brasileiras, majoritariamente branca. É o ponto de partida narrativo do filme. Que abre com uma decisão judicial inusitada onde uma mulher centenária ganha uma reparação financeira pelos anos de escravidão. Assustadas, as elites nacionais propõem outra reparação para substituir a primeira: “repatriar” os afrodescendentes para países africanos, diz o sofisma que se trata verdadeiramente de corrigir o erro histórico dos séculos de escravização negra no Brasil. O cinismo sofístico do privilégio branco é exposto de maneira absoluta em seus absurdos por Lázaro em sua forma de realização. Encaixotados em seus apartamentos (o caso do advogado negro Antonio) ou partindo para uma clandestinidade rebelde em catacumbas (a médica Capitu, que tem de fugir do hospital para não ser capturada), os negros fazem a força da imagem no filme a despeito das nebulosas da alegoria montada desde a peça teatral original.
Neste filme Lázaro não atua: só dirige. Põe em cena o habitual estrelismo de Taís Araújo, adquirido por seus anos de televisão majoritária, o que muitas vezes faz submergir suas grandes possibilidades de atriz; quando Taís deixa aflorar seu lado de intérprete, a performance narrativa do filme sobe. O elenco está cheio de bons atores: Alfred Enoch, Seu Jorge, Renata Sorrah. Adriana Esteves tem suas debilidades de desempenho resolvidas com humor pelo cineasta Lázaro. Demais, alguns luminares da arte brasileira, como os cantores Emicida e a falecida Elza Soares (a voz maravilhosa de Elza aparece na faixa sonora off, abrindo e fechando o filme, entoando que “meu país é meu lugar de fala”, um verdadeiro hino para aquilo que o filme quer dizer) e a escritora Conceição Evaristo colorem bem as aparições afetivas.
Claro que, limitado um pouco em sua proposta comercial de cinema, o espectador topará aspectos conformistas e conformados na realização de Lázaro. Há convenções formais que aqui e ali estorvam a força do original teor simbólico do argumento primitivo. No entanto, Medida provisória é basicamente sustentado por sua extrema necessidade nos tempos cínicos que vivemos.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br