O Prazer Da Dor
Crimes do Futuro se apresenta como uma metafora hiper-realista dos tempos nada amaveis que correm


Passados oito anos, o canadense David Cronenberg volta a dirigir um filme. No começo de Crimes do futuro (Crimes of the future; 2022) um menino é assassinado por sua mãe que o asfixia com um travesseiro. É impressionante como Cronenberg ainda é capaz de manter sua intensidade criativa; impressiona não menos como, reiterando as obsessões do cineasta pela arte das invasões dos corpos como se a câmara fosse um bisturi perfurador, Cronenberg sabe reinventar sua própria estética, resgatando no olhar do espectador provocações e incômodos que, apesar de esperados em se tratando dele, ressurgem como novas, atuais, únicas. Crimes do futuro é uma narrativa dos sombrios de nosso tempo, entre o físico e mental; o sangue, os corpos abertos, a estranheza do comportamento das personagens saem da imagem de Cronenberg como uma espécie de epistemologia em que se estuda como a dor dá prazer, como a dor se esvai apesar das aparências assustadoramente destruídas ou remontadas dos corpos.
Em Mapa das estrelas (2014) uma mulher vibra com a frustração duma concorrente que perde um papel de atriz e acabou de ver seu filho afogado. A dor a que se assiste no outro pode levar ao prazer neurótico. Os filmes de Cronenberg nos convidam para esta neurose de desfrutar a dor do outro, a dor da personagem em cena; e neste sentido Crimes do futuro acerta bem no tom deste convite, é o que talvez mais próximo o realizador chegou do momento de depuração máxima de seu cinema, Crash, estranhos prazeres (1996).
Viggo Mortensen, hoje algo como um intérprete-fetiche de Cronenberg, é uma ator-performático da trama que faz cirurgias-perfurações em seu corpo um pouco como experimentação, um pouco como arte, um pouco como uma nova forma de experiência sexual (corporal). A francesa Léa Seydoux interpreta sua parceira, que partilha as mesmas paranoias. À volta deles, num universo tenso e ameaçador, um grupo de indivíduos, autêntica fauna espiritual, se alinha nesta busca da dor no corpo como prazer filosófico, além-carnal. Uma estrela de ascensão internacional usada por Cronenberg neste ninho de estranhos é Kristen Stewart; a atriz, trilhando suas próprias inseguranças como intérprete, ela que nasceu de filmes mais populares e simplificadores, põe em cena uma forma trêfega de expressão facial, da dicção, do deslocar-se corporal, valendo-se de certas coisas que ela pôs em suas mais recentes personagens, a princesa Diana e a atriz americana de vida francesa Jean Seberg.
Observado neste espelho-câmara que é o cinema, Crimes do futuro se apresenta como uma metáfora hiper-realista dos tempos nada amáveis que correm. É uma obra-prima que emerge do terreno do desagradável. Quem se habilitará, fora da metáfora, a sentir na carne o prazer da dor?
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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