A Profundidade de Hanna Arendt
Fio a fio, Hanna Arendt desfaz os nos do seculo XX


A inteligência germânica tem na filósofa Hanna Arendt um ponto central de iluminação. Pode-se dizer também que Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo (The origens of totalitarismo; 1950) é uma obra cuja amplitude e agudeza de ideias ultrapassa sua base original, uma pensadora germânica engolfada na realidade da Europa do pós-guerra onde a incógnita duma terceira inquietava pelo teor de catástrofe: o livro de Arendt tem uma permanência transcendente porque foi elaborado por um cérebro de rara transcendência.
Desde o início, ela rejeita as facilidades do pensamento conformista. No prefácio original a seu livro, ela observa: “A convicção de que tudo o que acontece no mundo deve ser compreensível pode levar-nos a interpretar a história por meio de lugares-comuns. Compreender não significa negar nos fatos o chocante, eliminar deles o inaudito, ou, ao explicar fenômenos, utilizar-se de analogias e generalidades que diminuem o impacto da realidade e o choque da experiência. Significa, antes de mais nada, examinar e suportar conscientemente o fardo que o nosso século colocou sobre nós —sem negar sua existência, sem vergar humildemente ao seu peso. Compreender significa, em suma, encarar a realidade sem preconceitos e com atenção, e resistir a ela — qualquer que seja.”
Atacando, com seu verbo sempre eivado daquelas “loucuras do raciocínio” em que o universo germânico habitualmente imerge, os ninhos fundamentais dos sistemas de opressão contemporâneos (o antissemitismo, o imperialismo, o totalitarismo), Hanna Arendt faz uma devassa mental dos dilemas de seu século, o século XX. Uma centúria que começou na França com o Caso Dreyfus. “O Caso Dreyfus reuniu todas as correntes, abertas ou subterrâneas, sociais ou políticas, que haviam levado a questão judaica à posição de predominância no século XX”. Quem era esse indivíduo curioso e ambíguo, Dreyfus, que agregou em torno de si os progressistas de sua época contra os déspotas duma corporação? Segundo Arendt, “o próprio Dreyfus, na verdade um arrivista, que se gabava junto aos seus amigos que altas somas da fortuna da família ele gastava com as mulheres”. O escritor Emile Zola fez sua veia literária extrapolar para defender Dreyfus, que se tornou então uma personagem para a posteridade. Hanna não dá tréguas também ao francesismo de Zola: “E que falar de Zola, com seu apaixonado fervor moral, sua atitude política um tanto fútil, e sua declaração melodramática, à véspera da fuga para Londres, em que diz ter escutado a voz de Dreyfus implorando-lhe esse sacrifício?” Por que então um caso francês localizado no tempo e em suas circunstâncias de época, tem vindo tão longe? Em 1950 já Hanna, com sua implicância com o moralismo e os exageros, era profética para várias décadas: “O Caso Dreyfus pôde sobreviver porque dois de seus elementos cresceram em importância no decorrer do século XX. O primeiro foi o ódio aos judeus; o segundo, a desconfiança geral para com a república, o Parlamento e a máquina de Estado.”
Nada mais natural que um acontecimento como o Dreyfus fosse contemporâneo de uma literatura transversal como a de outro francês, Marcel Proust. Arendt anota: “A paixão pervertida de monsieur de Charlus por Morel, a devastadora lealdade do judeu Swann a sua cortesã, o próprio ciúme desesperado do amor por Albertine, que é, no romance, a própria personificação do vício, deixam bem claro que Proust considerava os marginalizados e os arrivistas, os habitantes de Sodoma e Gomorra, não somente mais humanos, mas também mais normais.” Swann ou Charlus seriam como porão de Dreyfus? Esta relação agudizada por Arendt, “entre a imagem estereotipada e a realidade que esses estereótipos distorciam”?
Fio a fio, Hanna Arendt desfaz os nós do século XX. “Só no ato final tornou-se claro que, na verdade, o drama de Dreyfus era uma comédia”. A pensadora sabe que “o erro comum dos nossos tempos é imaginar que a propaganda pode conseguir tudo e que um homem pode ser persuadido a fazer qualquer coisa”. Ainda hoje, e mais ainda, acreditamos nesta falácia. Segundo Arendt, subestimamos certas coisas ou realidades porque o espelho que usamos é distorcido. “As duas atitudes derivam do mesmo erro fundamental de considerar-se a ralé idêntica ao povo, e não uma caricatura dele.” Na verdade, a ralé abarca “todas as classes”, “todas as camadas sociais”, não somente os mais humildes ou desprotegidos. Hanna busca identificar situações: “Somente a ralé e a elite podem ser atraídas pelo ímpeto do totalitarismo; as massas têm de ser conquistadas por meio de propaganda”. É claro que, para aprofundar semioticamente os dizeres de Hanna, seria preciso recorrer ao original germânico do livro, o que está longe de ser o caso aqui.
Lá pelas tantas, a autora parece estar falando aos indivíduos do século XXI, este momento histórico em que escrevo. “Num mundo incompreensível e em perpétua mudança, as massas haviam chegado a um ponto em que, ao mesmo tempo, acreditavam em tudo e em nada, julgavam que tudo era possível e que nada era verdadeiro”. Diante disto, vamos ao pensamento final de Hanna em seu livro, quando ela aponta que “todo fim na história constitui necessariamente um novo começo”. Este “novo começo” é a única “mensagem” que o fim pode produzir. Estes nascimentos, assevera Arendt, são “cada um de nós”.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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