Glauber e Nosso Mundo Sem Sentido
Claro: claramente claro neste aspecto de espelhar a alma de um artista como Glauber


Claro (1975) é um dos filmes do exílio dirigidos pelo brasileiro Glauber Rocha. O filme foi rodado em Roma, na Itália. É uma obra da mais absoluta clandestinidade de seu gênio: ele radicaliza seus conceitos em ação de um cinema livre, tão à deriva quanto o mundo ao redor. Depois de O dragão da maldade contra o Santo Guerreiro (1968), Glauber, premido pela situação de um país opressivo, partiu para o exterior. Fez na Espanha a alegoria Cabeças cortadas (1970). E no Congo, na África, pôs os delírios de O leão de sete cabeças (1970). Antes de adoecer e voltar ao Brasil para se tratar e morrer, de doença obscura (depois se falou em AIDS antes da explosão da AIDS) em 1981, mas como pré-morte fez o agônico A idade da terra (1980).
Claro é pouco aludido nas enciclopédias glauberianas. Tratado à distância, por sua marginalidade estética. Mas sua energia cinematográfica, para quem o viu num escondido num ciclo em 1985 e o revê, passados quarenta anos, traz a hipnose própria do realizador. Glauber solta-se como nunca numa narrativa de ensaio onde um mosaico de ideias da época é montado para uma estrutura fílmica. Glauber fala do imperialismo, sua obsessão, e também expõe seus paradoxos e os paradoxos da esquerda. Faz uma obra gritada, com falas transbordantes, trêfegas, alucinadas. Põe em cena sua companheira daqueles anos exilados, a atriz francesa Juliet Berto, a mesma de A chinesa (1966), do francês Jean-Luc Godard. Em determinada sequência Glauber e Juliet aparecem juntos, em planos cujo delírio está tanto nos ângulos e movimentos de câmara quanto na forma libertária da montagem, e ambos, Glauber e Juliet, o homem e a mulher, parecem engalfinhados numa luta entre macho e fêmea, com o domínio tresloucado do macho.
Quando o filme foi exibido em Porto Alegre, em 1985, um amigo, crítico de cinema, me dissera que no princípio pensava estar gostando daquele filme louco, hipnótico, mas lá pelas tantas cansara de sua ausência de sentido. Meu amigo não compreendia muito meu fascínio com o filme, embora eu e este meu amigo tenhamos partilhado muitas vezes o gesto por certas excentricidades cinematográficas daqueles tempos. Segundo Glauber, Claro tem este título porque lhe parece claro em sua proposta, ainda que deixe “amplo espaço à livre interpretação”. Claro é um olhar profundo e amargo em torno (como se a câmara girasse, gritando o tempo todo) de um mundo sem sentido. É sua metáfora: a clareza do mundo é seu absurdo. Cada vez mais, à medida que os anos vêm, o sentido de um cineasta como Glauber Rocha faz sentido. Claro é claramente claro neste aspecto de espelhar a alma de um artista como Glauber.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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