Religiao e Arte no Cinema de Schrader

Fe corrompida (First reformed; 2017), eh uma das vertentes mais depuradas e agudas da forma de filmar de Schrader

14/04/2020 14:14 Por Eron Duarte Fagundes
Religiao e Arte no Cinema de Schrader

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Na epígrafe de seu clássico ensaio O cinema transcendental em filme (1972), o cineasta e crítico norte-americano Paul Schrader introduz-nos no pensamento do obscuro antropólogo holandês Gerardus Van Der Leeuw, citando esta frase-ideia: “Religião e arte são linhas paralelas que se interseccionam somente no infinito, e encontram-se em Deus.” Schrader é um calvinista e um artista; ele acredita na arte e em Deus e talvez veja a arte um pouco pelo prisma do pensador neerlandês, a arte como uma manifestação da divindade, ainda que somente no ponto final isto se revele. Cuido que, passadas tantas décadas em que Schrader faz cinema, é agora no frontispício do século XXI, que podemos vê-lo em seu auge, fazendo coisas que são mais que velhos pastiches, de simpática beleza, de seu principal mestre, o francês Robert Bresson.

Fé corrompida (First reformed; 2017), exibido somente no streaming digital e que ficou à margem dos cinemas daqui, é uma das vertentes mais depuradas e agudas da forma de filmar de Schrader. Talvez o único filme dele que faça sombra a seja A ressurreição de Adam (2008). A origem imediata de Fé corrompida é Diário de um padre (1950), de Bresson. Como neste antigo filme francês, em Fé corrompida o olhar do observador é coordenado, dentro das pudicas e severas imagens de Schrader, plenas de estaticidade, rigor formal, intensidade plástica e iluminação espiritual, pelas passagens mostradas e faladas do diário de um cura de aldeia; como em Bresson, o padre de Schrader tem uma doença grave, um câncer no estômago, e vemo-lo, o padre Toller, personagem central de , em planos em que parece urinar sangue e gemer. Como artista do espírito, Schrader vai navegar também em outros mares, rompendo um pouco com as amarras bressonianas comercializadas constrangedoramente em Gigolô americano (1980). Um destes mares é o cinema do sueco Ingmar Bergman, outro iluminador cinematográfico da alma. O filme de Bergman do qual se aproxima é Luz de inverno (1962), onde o pastor Tomas mantém ambíguas relações com uma fiel da igreja, Marta; em Fé corrompida o padre Toller cruza suas ambiguidades éticas, religiosas, sexuais com duas mulheres, a paroquiana Mary e a auxiliar de missa Esther. Mary tem um marido fanático ambientalista que se desespera tanto que vem a suicidar-se: a imagem de seu cadáver ensanguentado, deparado pelo padre, é forte. Após a morte do homem, as relações entre Toller e Mary se agudizam; no fim eles se beijam e planam como numa fantasia religiosa. Esther é ascética; seu ponto alto é cantar no púlpito. Toller encarna todo o sofrimento dos homens; e, em certo momento, fugindo da homilia da missa, onde o esperam, se castiga, lanhando seu corpo, até a produção abundante de marcas de sangue, com cordas de arame. Como em Gritos e sussurros (1972), de Bergman, o sofrimento visa a purificar e salvar; Bergman é mais agnóstico. Em há um relógio que tiquetaqueia, como em Gritos; o rigor plástico é reconstruído em Schrader, sem propriamente plagiar. Como em Sonata de outono (1978), outro Bergman, certos planos mostram a concentração da personagem num compartimento, mais distante da posição da câmara, dentro do cenário. Schrader enfeixa com rara grandeza todas as suas referências cinematográficas, em Fé corrompida.

O elenco de Fé corrompida é curioso. Ethan Hawke, Amanda Seyfried e Victoria Hill são compostos hieraticamente. O ator cômico negro americano Cedric the Entertainer, como um religioso, é mais solto. Schrader, no alto de sua maturidade, une o modelo interpretativo, as cores na imagem, a disposição dos cenários e o rigor despojado de seus quadros para produzir, em Fé corrompida, um pequeno êxtase místico convertido em arte.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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