O Cinema de John Hughes e Adjacencias
John Hughes deu liga no cinema americano dos anos 80 porque encontrou a formula certa
O ESCRACHO JOVEM DE HUGHES
John Hughes começou no cinema com uma comédia pura, Gatinhas e gatões (Sixteen candles; 1984), título esquisitoide para o original inglês, que é algo como dezesseis aninhos ou dezesseis velinhas. É uma narrativa que tem a espontaneidade e a ingenuidade de um principiante da direção cinematográfica; as coisas fluem sem medo de expor o próprio cinema de Hughes, sensivelmente bem feito, ao ridículo das situações de suas personagens. Apesar de enveredar para a tensão dramática de sua criatura principal, a garotinha vivida por Molly Ringwald cujo aniversário de 16 anos é esquecido pela família em função dos preparativos do casamento da irmã mais velha, e de também apontar para soluções romantizadas nas difíceis vivências dos jovens dos anos 80, Gatinhas e gatões o que propõe é um riso descontraído, necessariamente superficial.
O passar dos anos trouxe críticas ásperas a este modelito cômico da década de 80. Falou-se no retrato estereotipado e preconceituoso dum jovem asiático maluco e bêbado na festa da galera. Também muito se referiu às sequências em que uma garota, ébria, é dada por seu namorado a um amigo cheio de hormônios baratos: falou-se que o filme é machista e que ali espelhou-se num estupro, consentindo cinematograficamente com ele. Ainda com todas estas reservas, Gatinhas e gatões mantém sua dignidade de diversidade na passagem dos anos.
IRREVERÊNCIA SUAVE, CONFORMISMO E PADRÃO FORMAL
John Hughes deu liga no cinema americano dos anos 80 porque encontrou a fórmula certa. Fez filmes à margem dos sistemas de produção de Hollywood, com custo barato, e acertou na veia ao comunicar-se com as plateias majoritárias das salas, os jovens, chegando a um fácil sucesso comercial. É bem verdade que foi impulsionado por fazer a cabeça de certos críticos influentes pelo mundo todo.
Clube dos cinco (The breakfast club; 1985) é seu trabalho, hoje, mais citado como o ponto alto de seu modelo de filmar. O curioso é que, visto hoje, Clube dos cinco exibe muito mais seu tom dramático sombrio, enfeixando seu olhar sobre um grupo de jovens que são isolados num sábado numa sala de aula como punição de comportamento ou inadequação social, do que o histrionismo cômico da juventude oitentista com que começa o filme. Em pouco a narrativa compõe aquela sala de aula punitiva como uma prisão, e o filme de Hughes traz aspectos dum filme de prisão, aqueles que vão compondo os diversos caracteres de prisioneiros (a sociedade é uma prisão?).
Um belo filme, certamente, capaz de sustentar-se pela elegância e a naturalidade com que Hughes mergulha num universo perigosamente vulgar, chulo e fechado para grandes voos; Hughes tem os méritos narrativos de dispor com sensibilidade os elementos de cena, mas ele contou com os raros momentos de inspiração de seu elenco jovem, Molly Ringwald e Ally Sheedy, as meninas, a exibida e maluquinha, estão melhor que os rapazes, mas Emilio Estevez, Anthony M. Hall e Judd Nelson (este, o garoto perverso) se saem bem, equilibrando o conjunto interpretativo. A ingenuidade e as facilidades da trama são as características datadas do cinema de Hughes: superficializam o contexto cinematográfico, naturalmente, mas preenchem um vão necessário do cinema que fazíamos na época.
Nem o diretor Hughes nem seus intérpretes (até a mais estimada Molly Ringwald) sobreviveram ao tipo de cinema médio permitido pelos anos 80. Mesmo os que ainda estão vivos (Hughes já faleceu), permanecem como retratos de época: não se movem muito para o público de cá, isto é, salvo alguns cultores destas espécimes de um clássico cinematográfico como este.
Uma curiosidade, trazida à tona num artigo de 2018 para a revista “The New Yorker”, são as discussões sobre os aspectos sexistas do universo deste filme e de todo o cinema de Hughes. Molly expôs, no artigo, com clareza a visão machista imposta então a todos, inclusive às mulheres, pois a atriz se lembra que só depois dos 30 anos começou a afastar-se da ideia de ter por mais interessantes os homens verbalmente agressivos. Molly, talvez o modelo interpretativo que se liga mais visceralmente à linguagem cinematográfica de Hughes, ao rever os filmes, afirma que hoje fica surpreendida como “John, tão sensível em seus roteiros, para certas coisas, era cego para outras tantas”; ela está falando da condescendência de seu diretor com as situações machistas, filma-as sem olhar crítico. Sim: o retrato que Hughes faz de garotas em Clube dos cinco traz os conceitos machistas e patriarcais. Mas é de notar que toda a irreverência jovem do modelar cinema americano é aqui bastante suave e hoje amiúde soa como irrefreável conformismo de ideias. Suas tensões sombrias em torno dos jovens são superficiais e estão longe de qualquer densidade que se insinue.
A COMICIDADE ESTÁ NA LINGUAGEM
O lado mais inovador, e nem sempre bem compreendido, do modelo estético de Curtindo a vida adoidado (Ferris Bueller’s day off; 1986), a mais demolidora das comédias jovens de John Hughes que fizeram inesperado sucesso de público na década de 80, é a forma como o realizador incrusta na própria linguagem cinematográfica sua veia cômica. De maneira praticamente instintiva, Hughes se volta para a metalinguagem que desde os anos 60 incomodava o cinema, mas sem as encucações intelectuais de Jean-Luc Godard, por exemplo, sem ser uma referência ao teatro de Bertold Brecht; em instantes bem marcados ao longo da narrativa, a personagem central, o malandro vadio Ferris Bueller, em magnífica interpretação de Matthew Broderick, se volta para a câmara (o público) e diz algo irônico sobre a ação que se está vendo, este recurso de linguagem se despe no ato de sua sofisticação inicial e desce ao lado de todos os outros recursos cômicos em que Hughes se revelou de precisão exemplar, os diálogos vivos, os intérpretes debochados, a cena crua e, apesar de alguma fantasia, bastante natural, para dar sempre um recado irreverente, aqui em seu grau máximo.
Em seu tempo, Curtindo a vida adoidado conquistou o público mas teve reservas críticas. A anarquia de história e formas de Curtindo a vida adoidado, com seus estereótipos fáceis, seus tipos jovens, sua opção por coisas vulgares da vida, foi o ponto de desencontro crítico com este cinema mais característico. A divisão se estabelecia: diziam que Hughes fazia filmes para adolescentes, e o público adulto teria dificuldade em assimilá-lo; embora eu estivesse na época mais próximo dos jovens que hoje etariamente (eu tinha pouco mais de trinta anos, hoje já passo bem dos sessenta), é curioso observar como esta energia de encenação de Hughes (a dança e o canto de Broderick em cima dum carro alegórico, numa parada de origem germânica, cercado de jovens de vestuário caracterizado, é um luxo sensorial em imagem e som) me parece agora mais extasiante que na época, agora na minha velhice. A teoria de filme para jovem não resistiu ao tempo: Curtindo a vida adoidado é um filme permanente, em termos cinematográficos. Mesmo feito com o estômago, puro instinto devorador, é a realização internamente mais elaborada de Hughes; em todos os seus passos a invenção se faz presente de maneira natural, os próprios artifícios são tão despojados que atingem seu paradoxo, o realismo descarnado.
Um hino ao hedonismo de viver, Curtindo a vida adoidado apresenta um grupo de jovens específicos, simbolizado nos três amigos, Ferris, a namorada Sloane, o amigo Cameron, todos tipos estranhos, correspondentes americanos daquelas figuras (sem o figurino) do espanhol Pedro Almodóvar em seus inícios, mas tem o poder de comunicação com qualquer plateia aberta às invenções da vida, jovens deste tipo, de outro tipo ou pessoas mais maduras.
O FRACASSO INESPERADO
O roteiro está assinado por John Hughes, o homem do coração de uma certa juventude americana, libertariamente irresponsável e imatura, da década de 80. Jennifer Connely, com seu charme cênico e na beleza de seus vinte anos, estrela o filme. Seu par é Frank Whaley, que, se está longe de ser um intérprete de relevo, se esforça por desenvolver seu tipo provocativo e cômico, aproveitando as sobras da sensualidade de Jennifer. A história traz juventude e ação. O diretor, se não é um criador cinematográfico, é um artesão que sabe cumprir as regras de encenação comercial do modo de Hollywood. Vivíamos o início da década de 90, onde o público sabia curtir esta categoria de comédia jovem —leve, desfrutável e descartável— que fez a cabeça do público no decênio anterior. Mas Construindo uma carreira (Career opportunities; 1991), dirigido por Bryan Gordon, apesar de contar com vários elementos para facilitar as bilheterias, fracassou financeiramente em sua lançamento; o que se sabe é que as motivações do público não obedecem a uma lógica determinante, têm seus mistérios.
Não se pode explicar o lado comercial de um filme por sua construção cinematográfica; nem sempre as coisas são tão simples. Mas é certo que o roteiro de Hughes busca reeditar o sucesso anterior de Hughes, como cineasta e como roteirista. A narrativa se abre com a personagem Jim (Whaley) falando diretamente para a câmara (o público), recurso utilizado por Hughes no melhor filme que ele dirigiu, Curtindo a vida adoidado (1986); logo depois vemos Jim contando a história para três meninos, o que simboliza a intenção do filme desde seu roteiro, caracterizar o espectador como um ingênuo e curioso menino, algo que Hughes fez bem em seus melhores momentos; mas falta a Gordon o engenho de direção de direção de Hughes, e aqueles problemas do próprio cinema de Hughes, superficialidade e facilidade excessivas, se salientam em Construindo uma carreira, destruindo boa parte do charme da proposta inicial. Mas este desleixo de narrativa cinematográfica não abona o insucesso comercial: vemos muitos filmes desajeitados cujos elementos primários (atores simpáticos, histórias afins, simplificações naturais) servem à bilheteria. Mas aqui se pode dizer que Construindo uma carreira é um retrato cinematográfico desbotado do universo ficcional que Hughes desenhara em obras tão desajeitadas quanto atraentes como Gatinhas e gatões (1984) e Clube dos cinco (1985). Diante de seu fracasso, Gordon acabou por dirigir poucos filmes; faltou-lhe, por motivos obscuros, atingir a alma do público americano.
Um ano antes, um roteiro de Hughes, Esqueceram de mim (1990), de Chris Columbus, arrasou no mercado de filmes. Observando bem, Construindo uma carreira parece tentar aproveitar um dos ganchos do filme de Columbus: os ladrões do filme de Columbus, trapalhões e anedóticos, são revividos pelos larápios que aparecem para tentar bagunçar o idílio de Josie e Jim, as criaturas de Jennifer e Frank, no cenário fechado duma loja de departamentos. No entanto, esta ideia que pode ter nascido da própria cabeça de Hughes (que produz Construindo uma carreira) não funcionou para as plateias da época. Por razões que, mesmo com severas reservas estéticas à realização, não se alcança compreender.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br