A Primeira Vez que Vi Paris (E Adjacncias...) ou As Casas So Navios

Neste belo texto, Eron Fagundes nos conta a sua experincia de visitar a Frana em 2012. Um roteiro interessante para quem quer conhecer um dos beros da Stima Arte

03/02/2014 22:02 Por Eron Fagundes
A Primeira Vez que Vi Paris (E Adjacências...) ou As Casas São Navios

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Minha primeira passagem pela França foi feita de calor e sol. Quase não vi a chuva. Era no que pensava quando, tomado pela melancolia excitante do retorno, espiava, pela vidraça do Aeroporto Charles De Gaulle, em Paris, os pingos d’água que começavam a fortalecer-se. O céu estaria chorando diante de minha partida, ou o céu era eu que estava chorando diante de minha própria partida? O único momento de chuva de que me lembro na viagem foi em Mônaco (minto: numa determinada noite em Nice caminhei por ruas molhadas e topei com algumas gotas caindo, sim); mas  em Mônaco foi uma daquelas intensas porém rápidas chuvas de verão que provocam correrias das “peças” para todos os lados  e logo depois tudo volta ao normal com as peças encaixando-se no tabuleiro.

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As casas são navios em que estamos quando estamos na travessia da noite. Numa crônica inserida num livro didático de meus tempos estudantis nos anos 70 lá estava o brasileiro Carlos Drummond de Andrade citando o francês André Gide, que numa determinada novela teria associado as casas a navios e a noite, ao mar. E cá estou eu, evocando uma temporada na França, a parafrasear Drummond quando parafraseava Gide. As ruas de Drummond no Rio eu as pisei faz muito tempo pela primeira vez; até já dei com uma estátua do poeta no calçadão de Copacabana. As “rues, quais, boulevards” de Gide comecei a frequentar agora: Montmartre, especialmente, o bairro boêmio do século XIX e princípios do século XX, as colinas especulativas, os cabarés arcaicos.

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Apesar de ter começado meus caminhos franceses pelas praias do sul do país, no Mediterrâneo, próximo à fronteira com a Itália, praticamente não tomei banho de mar. As correrias dos passeios me impediram. Mas não poderia deixar de dar meus pés ao Mediterrâneo, eu, que só conhecia, de praias marítimas, as do Atlântico: foi em Menton, cidade fronteiriça com a Itália, por um breve instante. Foi um momento de felicidade transcendente. Luc Ferry, numa crônica que eu leria poucos dias depois no jornal “Le Figaro”, pergunta no título de seu artigo: “Pode-se definir e medir a felicidade?”. Na frase que abre seu texto ele dá as cartas da questão: “Ao sol, na montanha ou no mar, as férias são por excelência o momento onde a procura da felicidade está na ordem do dia.” Umas férias na França, então, é bem onde se pode pensar no assunto: haveria, como querem os utilitaristas ingleses citados por Ferri, um cálculo possível para os prazeres e os sofrimentos? Eis o que a França faz, senhores...

Pisando pela primeira vez em águas do Mediterrâneo: Menton.

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A maior parte de nossa breve passagem pela terra pode ser mesmo um desperdício. No entanto, se há duas ou três coisas que se viveu com intensidade, viver aqui nesta brevidade quase inútil valeu a pena. Não sei bem o que me fascina nas viagens, mas sei que este fascínio —cuja intensidade é imaterial e não pode ser medida pelo relógio das encenações habituais— existe. Um  amigo me diz que para ele uma viagem tem de ter objetivo. Suspeito que a viagem  em si pode ser meu próprio objetivo. Já fiz viagens em busca de cinema. Já dei com uma Feira do Livro ao ir numa Páscoa a Buenos Aires. Mas a viagem para mim prescinde disto, embora estes prazeres externos a ela (filmes, livros) acresçam  em mim o grau de felicidade.

Em fevereiro de 1978, a meus vinte e dois anos, sei que, a bordo dum ônibus da Penha, em minha primeira viagem para fora do Rio Grande do Sul, senti este fascínio indefinível ao enxergar uma placa que dizia: “Divisa dos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina”. É como se eu abrisse uma porta emperrada. Outra emoção perturbadora e estranha: numa noite deste mesmo distante fevereiro de 1978, antes de sair do Rio de Janeiro para Belo Horizonte, em Minas Gerais, cruzei a pé as praias do Flamengo e de Botafogo, segurando minha mala, até o Pão de Açúcar, para subir no famoso bondinho carioca; era noite, como disse, o Rio iluminado, seus morros e enseadas se estendiam generosamente diante de meus olhos, ninguém falava português no teleférico que ia subindo e descortinando o Rio lá embaixo, aquela Babel desconcertante produziu em mim uma sensação internacional que até hoje não se despegou de meu hálito, uma sensação  que antevia meu próprio futuro de viajante, olhos e ouvidos acesos como nunca. Pouco mais de dois anos depois, em agosto de 1980, em Montevidéu, num estádio de futebol, algo transcendeu em meu espírito maravilhosamente ao sentir na pele uma aura particular de um torcedor de futebol muito diferente daquele torcedor     que eu frequentava nos estádios brasileiros. Viajar para mim, mais do que distrair o espírito, o aprofunda, ainda que seja difícil definir esta profundidade. O  que me define são as coisas que amo: livros, filmes e viagens.

Quando eu pela primeira vez pisei no Rio, até hoje minha cidade brasileira favorita, imaginava, em minha ingenuidade semiadolescente cumulada de provincianismo, que cair no mundo —chegar a Londres, Paris, Nova Iorque, Roma— seria questão de tempo, dois ou três anos no máximo. As décadas provaram que uma paixão intensa pode ficar sem solução por algum tempo. A Europa foi ficando cada vez mais longe, parecia já estar fora de nosso sistema solar. Em 2012 a Europa desembarcou na terra: ao menos, um pedaço dela, a França, ou um pedaço da França. Um foguete para cruzar o Atlântico, mais de dez horas sofrendo de tensão urinária a bordo dum avião da Air France que saía do Rio para Paris, vencer um fuso horário em que o atraso brasileiro se dá em cinco horas e cair, duro e emocionado, ou duramente emocionado, nos braços labirínticos do Aeroporto Charles De Gaulle. Quando uma funcionária do aeroporto, conduzindo a fila que se dirigia para o guichê da Polícia Federal francesa, acionava de quando em quando a frase “avancez, s’il vous plaît”, não acreditei, quase paralisado de emoção; eu estava em Paris, e a língua francesa, que aos onze anos de idade eu ouvia jocosa e interessadamente numa série ginasial da cidade gaúcha de Bento Gonçalves (“Pierre a un long cou” era a frase do livro lida pela jovem professora, despertando reações maliciosas na gurizada), estava ali diante de mim, exigindo atenção e prazer, como símbolo desta Paris sonhada e delirante. Desembarcavam  comigo no Aeroporto Charles De Gaulle o garotinho arredio de onze anos na serra gaúcha nos anos 60 e o jovem deslumbrado que ia a bordo do teleférico carioca no fim dos anos 70.

 

Chegavam ao Charles De Gaulle o garotinho de 11 anos,
o jovem de 22 anos e o madurão de 56 anos.

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Paris, neste primeiro vislumbre, foi uma passagem de aeroporto. Estávamos a caminho de Nice, no sul da França, perto da Itália. Calor —muito calor. A Côte d’Azur. Também chamada de Riviera Francesa. Praias do Mediterrâneo para um olhar que vem das praias do Atlântico. Os cenários percorridos pela atriz francesa Jeanne Moreau num filme de Jacques Démy dos anos 60, a baía dos anjos, a autoestrada entre Nice e Menton (diz-se que foi a primeira autoestrada europeia e quem determinou sua construção foi o italiano Benito Mussollini). A estátua de Garibaldi numa praça de Nice; como em todas as praças, desocupados em torno de estátuas. Garibaldi, um italiano batizado inicialmente com um nome francês, nasceu em Nice que também se chamava Nizza e pertenceu à Itália; alguns ainda chamam à cidade Nizza ou na forma provençal Nissa (Tenho para ler as memórias de Garibaldi escritas por Alexandre Dumas). Em Nice ainda há bondes elétricos, objetos que se escondem em minha memória na década de 60 quando eu, saído do interior, vinha visitar meus parentes em Porto Alegre: os bondes ainda existiam na capital gaúcha. Pois é: visões de Nice me ressuscitam a Portinho de tantas férias de infância nos anos 60.

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Na noite de sábado de minha chegada a Nice sentei-me com Marilene num bar, na calçada, onde ouvimos uns músicos de flamenco e devorei um prato de peixe degustado com a intensidade de toda uma viagem que estava por vir. Ali já comecei a misturar francês com espanhol: era a Babel do bondinho do Pão de Açúcar de fevereiro de 1978 que retornava.

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Menton, a bela praia onde por breves segundos pude molhar meus pés no Mediterrâneo, e sua divisa com a cidade italiana de Vinte Milhas. Mônaco e seus luxos, tomando um sorvete no Café de Paris, no Principado, demos com uma rara chuva durante a viagem, no começo chuviscos, depois algo mais forte, as pessoas correndo para abrigar-se, mas logo a água desapareceu do céu e com a volta do sol as andanças se normalizaram. Visita à cidade medieval de Eze, cujo nome se enraíza etimologicamente em Isis, deusa antiga da fertilidade; há no alto das escadarias que levam ao topo-vista do lugarejo o corpo esculpido duma mulher grávida.

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Nice em alguns aspectos paisagísticos pode lembrar o Rio e aquela paisagem carioca que tanto amo (a despeito do francês despeitado Claude Levi-Strauss): a cidade está cercada de montanhas e de mar; a cadeia de montanhas é alcunhada pré-Alpes, pois antecipam os verdadeiros Alpes que recobrem a Itália e a Suíça.

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Em Paris não tive tempo de visitar os cemitérios básicos, o Père Lachaise, o de Montmartre, o de Montparnasse. Curiosamente, quase sem querer, acabei chegando ao túmulo do pintor Chagal em outra cidadezinha de feição medieval, Saint Paul de Vence. Trata-se de um pequeno túmulo entre outros túmulos obscuros, em torno e abaixo dos túmulos o mato viceja.

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No povoado de Grasse, entramos nas dependências da fábrica de perfumes Fragonard. Depois, Cannes, a visão da Croisette (croisette: diminutivo de cruz, “croix”), o Palácio dos Festivais (antigamente o cinema do Festival de Gramado se chamava Embaixador, passados alguns anos passou a imitar Cannes, Palácio dos Festivais), e o imaginário do cinemaníaco entra em ebulição. No restaurante em que almoçamos em Cannes encontramos uma moça de feição índia, natural de São Luís do Maranhão, que dizia trabalhar por ali há oito anos.

 

Cannes: a praia diante do cinema.

Almoço num restaurante em Cannes.

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Ao fim da tarde, empreendi uma caminhada  pelas ruas silenciosas de Carcassone, uma destas cidades interioranas europeias que parecem ser a matriz de nossos povoados colonizados por europeus como Gramado, no Rio Grande do Sul. No meio dos silêncios agradavelmente inquietantes duma longa avenida  que partia do hotel para o perder de vista, um ou outro monossílabo ou dissílabo em francês. Quase como um filme mudo em que não se precisa de legendas. Mais: Bourges e sua catedral mais despojada que aquelas que veríamos em Paris, Avignon e sua ponte e sua fortaleza papal.

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Paris um dia chegou. Numa quinta-feira, quase nove horas da noite, o dia ainda estava claro na capital francesa (na França no verão anoitece mais pelas dez horas noturnas). Não subi na Torre Eiffel, mas vi seus tremelicos visuais às onze da noite. Não estive em cemitérios. Mas caminhei uma hora e meia, saindo de Porte d’Italie (onde estava hospedado) até Montparnasse, em busca do La Closerie des Lilas, o restaurante a que Hemmingway deu fama a partir dos anos 20 do século passado. Sorvi vinho no Les deux-magots. Meti minha careca atrevida numa placa, em Saint-Germain-des-Prés, onde se liam os nomes de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, o chamado casal-cabeça do século XX, um casal que fazia sexo utilizando o raciocínio em palavras (seja lá o que isto signifique).

No La Closerie des Lilas

 

Sorvi vinho no Les deux magots

 

Meti minha careca atrevida entre Sartre e Madame de Beauvoir

 

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Museu do Louvre, esculturas do mundo antigo, pinturas napoleônicas. Palácio de Versalhes e seu impressionante corredor de espelhos.

 

A coroação de Josephine, esposa de Napoleão,
num quadro de pintor da época. Museu do Louvre.

 

 

O impressionante corredor de espelhos. Quase como num filme
do alemão Rainer Werner Fassbinder. Palácio de Versalhes.

 

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Um passeio a pé pela beira do Sena. Outro passeio de barco em que se via Paris a partir do rio. No passeio a pé (último dia na França, um domingo) os ciganos tentaram intimidar-nos, um quase assalto; então saímos daquele calçadão do rés da rua para o calçadão debaixo, mais próximo do rio.

 

Caminhada pelo Sena: estacionando provisoriamente.

 

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Numa perfumaria da Rua Rivoli, defronte do Museu do Louvre, minha mulher se achou: ainda mais que havia um departamento que atendia brasileiros. Numa das lojinhas da Rivoli Marilene falava em português, a atendente falava em francês, mas pareciam entender-se aos poucos. Marilene investigava algumas roupas, queria saber se havia de outra cor além daquelas que se estava vendo. “Tem de outra cor?” arriscava Marilene, insistindo. A francesinha não se deu por rogada e foi baixando peças dos  esconderijos, afirmando a cada mostra de tecidos: “Autre couleur, autre couleur”.

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A casa, onde agora estou, é o navio. Mas o navio mesmo numa viagem é meu próprio corpo. Ele carrega minhas viagens de cá para lá até a última.

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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