Um Critico Amoroso
Eneas faz tamb?m, talvez em nome de todos os analistas gauchos dos anos 60 que nao compreenderam o cineasta endeusado pelos intelectuais brasileiros daquela decada
Enéas de Souza, um dos grandes críticos brasileiros dos anos 60, voltou há algum tempo a participar da questão cinematográfica gaúcha e nacional. Primeiramente, tornando a escrever seus densos artigos para a revista sul-riograndense Teorema, seus textos sobre os filmes Sarabanda (2003), do sueco Ingmar Bergman, e Maria (2005), do norte-americano Abel Ferrara, são autênticas lições de cinema em palavras. Depois, nasceu a nova publicação do clássico ensaio Trajetórias do cinema moderno (1965), escrito por Enéas quando contava com escassos vinte e sete anos.
O que a Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre trouxe ao conhecimento das novas gerações é o texto completo do livro de 1965, acrescido de alguns outros textos esparsos dos anos 60, algumas análises críticas de filmes atuais e dois estudos especialmente redigidos para o volume, Um corpo que cai (1958), do inglês Alfred Hitchcock, outro uma revisão de conceitos da obra do brasileiro Glauber Rocha, notadamente em seus dois trabalhos básicos, Deus e o diabo na terra do sol (1964) e Terra em transe (1967).
Enéas pertence à estirpe dos pensadores cinematográficos que, como o carioca José Lino Grünewald, utiliza o auxílio de várias outras atividades do conhecimento (sobretudo a filosofia, que, aplicada à estética, lhe rende achados maravilhosos) para chegar ao coração do cinema, princípio e fim de sua paixão de pensador. O cheiro inquieto, revolucionário, profundo da década de 60 perpassa as páginas de Trajetórias do cinema moderno, contaminando inclusive os textos mais recentes, diferentes um pouco dos antigos, pois há certas mutações nos escritos de Enéas de hoje, mas iguais na pertinácia com que busca suas explicações para os filmes: pertinácia atravessada tanto pelo rigor quanto por uma paixão densa, sem concessões.
É curioso que Enéas ressurja numa época (este alvorecer do século XXI) em que a crítica cinematográfica gaúcha parece feita muitas vezes por indivíduos cujo interesse é sobreviver num ambíguo jornalismo cultural. As pessoas que hoje escrevem sobre cinema no Rio Grande do Sul o fazem assim como poderiam escrever sobre moda ou sabonete ou esportes; a paixão por cinema ou por escrever sobre cinema ou por debater cinema lhes passa longe, creio. Enéas pertence a uma geração em que escrever sobre cinema era feito como se fosse a coisa mais importante que se poderia fazer no mundo. É bem verdade que Enéas depois bandeou-se para a economia. Mas esta é uma outra história, de motivações diferentes, talvez um pouco implícita em seu texto sobre Maria, de Ferrara, para a revista Teorema número 10. O que agora importa é que sua descida no meio cinematográfico gaúcho topa uma terra solapada pela vulgaridade. O encontro de Trajetórias com este estado de coisas provoca um choque no leitor. Lembro que o crítico Tuio Becker, há alguns anos, pouco antes de contrair um mal que destruiu seu cérebro e o jogou numa clínica porto-alegrense, me revelava, numa estranha missiva, seu espanto e sua inadaptação às coisas do mundo atual; entre a metáfora e a realidade irreal, Tuio preferiu refugiar-se na doença para escapar de um mundo que já não lhe dizia nada, o espírito do grande crítico de cinema exilava-se melancolicamente na doença. Enéas tentou fugir para a economia, durante décadas, como antevendo os descaminhos do pensamento cinematográfico; voltou na maturidade para experimentar os efeitos de sua ação sobre um mundo tão diferente daquele em que sua alma se formou.
Há um texto da atual edição de Trajetórias, “Reflexões de crítica nova”, datado de janeiro de 1966, que é como um holofote de todo o pensamento crítico de Enéas, ilumina todo o livro, todos os demais textos. “Um crítico nasce para o diálogo e para a didática”, escreve Enéas. E depois de atribuir ao diálogo a relação afetiva com os leitores e ver nos aspectos didáticos ou professorais o fumo de ódio que pode provocar, Enéas conclui que “o que faz este crítico gostar deste ou daquele cineasta é a paixão, o movimento amoroso”. Assim, Enéas revela seu processo crítico: um ato de amor. Com o cinema e com os leitores que se servem amorosamente deste processo crítico. Um crítico amoroso, pois.
É de amorosidade que é feito seu debruçar-se sobre Um corpo que cai, por exemplo. Como a alemã Lotte H. Eisner, às vezes parece que Enéas exerce sua crítica nunca como um cientista, mas com o poder evocativo dos melhores romancistas, edifica uma poética da crítica como se os conceitos compusessem personagens de um romance. Ou por outra: há trechos de sua evocação do filme de Hitchcock que parecem significar que Enéas teria apanhado o filme (não o roteiro do filme, mas suas próprias imagens) e transformado este filme num romance, pois se há romances que vêm a gerar filmes após materializados em roteiros, não pode uma crítica amorosa ser uma narrativa romanceada que capta o espírito de um filme? “Madeleine move-se numa dança melancólica, de uma sensualidade obscura, que está na pele, no gesto e no andar. Sua alma é seu corpo. E tem uma natureza triste, sombria, busca afeto e perfeição. Mas, sendo serpente que imanta, Madeleine dinamiza seu corpo, ao acaso, como se tentasse achar alguma coisa, que não se sabe se é solução ou só fuga onírica.” Poderíamos seguir adiante. O acalanto das frases de Enéas é notável; o leitor é embalado como num berço, poucas vezes Hitchcock foi tão bem captado em seu refinamento e ritmo.
Enéas faz também, talvez em nome de todos os analistas gaúchos dos anos 60 que não compreenderam o cineasta endeusado pelos intelectuais brasileiros daquela década, o mea-culpa reanalisando filmes de Glauber Rocha, a mais turbulenta figura cultural do país naqueles anos. No fundo, o que aí está é a capacidade de um crítico de expor uma das facetas menos nobres de sua personalidade: seus erros. E é uma nova amostra do movimento amoroso que o crítico Enéas de Souza constantemente reclama para si.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br