Rua de dentro (2020), de Marcelo Moutinho, é uma “aparente” coletânea de contos em que a unidade narrativa é dada por alguns elementos. Os cenários: uma cidade, o Rio de Janeiro de nossos dias. O espírito das histórias: histórias cotidianas de extrema contemporaneidade. Pode-se aplicar ao livro aquilo que em certa época se aplicou ao cinema: literatura em episódios. É como se o narrador de Moutinho se pusesse a uma janela de um lugar qualquer no Rio e espiasse as diversas histórias que vai contar. Em Rua de dentro, mais que narrar uma história e outra, o que se vê é um feixe de narrativas que procuram conectar-se umas nas outras, umas saem de dentro das outras e parecem devassar-se umas às outras.

Moutinho esforça-se, desde o uso da linguagem, por desglamurizar seu processo estético. E, neste sentido, seu conto de abertura, "Purpurina", a história do transexual que tem problemas com seu pai, arcaico moral e familiarmente, é o mais bem sucedido entre todos de Rua de dentro.

“Foi a morte de mamãe que me reabriu as portas de casa. Poucos dias depois do enterro dela, meu pai me procurou. Acho que percebeu que morreria sozinho e decidiu me manter por perto, ainda que não morando junto. Apesar do indisfarçável incômodo, ele não reclama mais das minhas roupas, da maquiagem, da voz em falsete. Mas nunca me chamou de Camile. Gustavo, sempre.”

Nos demais contos, apesar de manter o tom de música de câmara do dia-a-dia, Moutinho vai perdendo a força de seu engenho inicial. A emoção estética e humana, chegando lá em “Retrós e linhas”, apesar das correções e precisão formais, decai numa espécie de lugar-comum que está sempre à espreita duma literatura concebida como esta de Moutinho.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)