O Cotidiano a Margem ou na Margem do Cotidiano

Loucuras de uma Primavera tem algo de magico nas nebulosas de suas imagens

23/10/2021 02:28 Por Eron Duarte Fagundes
O Cotidiano a Margem ou na Margem do Cotidiano

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Depois de sua longa fase americana (tão brilhante quanto seus trabalhos feitos, antes e depois, em seu país natal), o francês Louis Malle retornou à França com seu cinema rigoroso e de intensa naturalidade. Loucuras de uma primavera (Milou en mai; 1990) foi seu segundo filme deste retorno. Houve um descaso na época e há um descaso histórico para com este Malle que recaptura os sentimentos de cenários e personagens duma certa vertente da nouvelle vague do qual a arte de Malle, apesar de contemporânea, se afastava em muitos aspectos. Em parte este descaso pode ser explicado pela natureza do abandono dos temas de escândalo que havia em alguns dos mais comentados filmes de Malle; ou, essencialmente, porque este filme, entre lírico e nostálgico, das cercanias de maio de 68 na França sucedeu a Adeus, meninos (1987), o filme que marcou o reencontro de Malle com sua nação originária e habitualmente tido como uma das mais belas narrativas que ele realizou. Mas, revisto agora, décadas de seu lançamento, Loucuras de uma primavera estampa uma clara realidade: não está abaixo das obras mais bem sucedidas do cineasta.

A precisão estética da realização nasce da força íntima de um roteiro que parece escrito ao sabor dos fatos, como uma memória-presente, uma memória-em-ação. Este roteiro foi coescrito por Jean-Claude Carrière e Malle. É como se os dois artistas comungassem as mesmas lembranças. O que era de fato. Diz-se que nos dias finais de 1968, Carrière e Malle circularam por Paris a bordo dum veículo. Malle, o cineasta, não chegou a filmar nada: tanto ele quanto seu companheiro observavam, escutavam. Pouco mais de vinte anos após esta andança pela capital francesa, Carrière e Malle sentaram-se para escrever estas evocações. O resultado é a rodagem de Loucuras de uma primavera por Malle. Os diálogos vivos, a natureza despojada das interpretações, os cenários ao ar livre cheios de tensão política e espiritual substituem, dois decênios mais tarde, o documentário não filmado de Malle em maio de 68.

No começo de Loucuras de uma primavera uma mulher já de idade prepara alguma coisa na cozinha. Suas agitações têm uma ruptura, e ela cai desfalecida, morta, seu gato preto põe-se a lambê-la, sua empregada a vê e apavora-se. Estas cenas são alternadas com outras cenas, em que dois homens brincam com uma colmeia, um destes homens é a personagem de Michel Piccoli. O filme vai desenrolar-se com todos à volta do cadáver, instalado na casa para as exéquias antes do sepultamento, como era praxe na época, da matriarca, que é a mãe de Milou, a criatura vivida por Piccoli. Para o funeral, a família começa a chegar naquele local de campo; a primeira personagem que se apresenta é Camille, vivida por Miou-Miou, filha de Milou, a atriz é o segundo nome mais conhecido do elenco. Sobrinha, netos, genro, todos se juntam naquela discussão inventária da recém-falecida. À distância deste cotidiano, o rádio e as pessoas que ali chegam trazem o grande acontecimento, o que passou à história, as convulsões em Paris naquele maio. Malle roda a vida cotidiana: como sempre fez. Mas sem abdicar de fazê-la à luz daquilo que transforma: a história em movimento. Lá elas tantas, irreverente como ele só e suas criaturas, Malle filma um dança em roda das personagens em torno do cadáver da matriarca; o gato preto rosna a um canto, mas não adianta, apesar de tudo a festa se insinua, os tempos da miscelânea sexual e da constante revolução são chegados. Ao menos para o cinema de Malle, a revolução nunca parou, nunca se deu o retrocesso moral. Loucuras de uma primavera tem algo de mágico nas nebulosas de suas imagens.

 

(Eron Duarte Fagundes eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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