A História Nas Mãos do Jornalista

O jornalista é o historiador do cotidiano. Como a história contemporânea é feita basicamente de cotidiano, o jornalista veio a ser, desde pelo menos o século 19, a grande personagem que conta a história. Saiba mais sobre o assunto!

25/11/2012 23:46 Da Redação
A História Nas Mãos do Jornalista

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Sabe-se: o jornalista é o historiador do cotidiano. Como a história contemporânea é feita basicamente de cotidiano (mesmo que este cotidiano se passe numa reunião ministerial), o jornalista veio a ser, desde pelo menos o século dezenove, a grande personagem que conta a história. A influência do olhar jornalístico para a linguagem está tanto nos textos do francês Honoré de Balzac quanto na literatura do brasileiro Machado de Assis; mas, quando se trata de falar de coisas antigas, este olhar jornalístico acaba muitas vezes substituído pelo narrador épico, de linguagem rebuscada, como no português Alexandre Herculano, contemporâneo do francês Balzac e do brasileiro Machado de Assis.

Agora, como perder a pompa diante das pirâmides dos faraós?

O brasileiro David Coimbra é, antes de tudo, um jornalista. Um cronista. Um observador do cotidiano. Mas é um homem de letras: lê (sabe ler, ler é seu trabalho, para evocar uma anotação de outro jornalista-escritor brasileiro, Diogo Mainardi) e escreve bem assim, como quem lê e sabe ler, seu texto se distingue facilmente do jornalista-padrão, o jornalista-noticiário, o jornalista-não-texto (se é que este existe, se é que não estou radicalizando para caracterizar o abismo que separa a obra jornalística de David do que escreve, por exemplo, Wianey Carlet, um e outro oriundos do esporte e compondo aparentemente na mesma língua portuguesa, mas que distâncias!). No entanto, levado por esta afeição do jornalismo (qualquer jornalismo, inclusive o de Wianey) pelo cotidiano, é que David se aproxima da grande história, aquela que gerou as raízes do que está hoje por aí: em Uma história do mundo (2012) David se despe da pompa do historiador clássico para ser um cronista da história; vai ao Egito dos faraós com o mesmo sentido com que se dirige a um campo de futebol para ver um jogo: observar as coisas ao rés-do-chão; ver o mundo antigo como se este mundo estivesse  agora diante de seus olhos; e, suma dos milagres, David logra transmitir esta sensação a seu leitor, onde se incluem espíritos múltiplos, desde aquele leitor de jornal determinado pelo marketing até aquele  que simplesmente gosta de um texto imaginativo e efervescente, ou talvez estes dois tipos de leitor estejam no mesmo indivíduo.

Antes deste livro, paralelamente a suas crônicas jornalísticas, David tentou a ficção: Canibais —paixão e morte na rua do Arvoredo (2004) e Jô na estrada (2010), conquanto escritos com a graça de linguagem de David (em Uma história do mundo, ao aludir ao gênio do egiptólogo Jean-François Champollion, David brinca com diversos tipos badalados pela mídia atual, um deles é um irônico autorretrato, “qualquer jornalista que escreve crônicas graciosas em dois quintos de página de jornal”), padeciam de uma direção narrativa: eram formações cronísticas no lugar errado. Por um ar benfazejo qualquer, isto não ocorre em Uma história do mundo: apesar de levar suas experiências de cronista semanal para uma exaustiva atividade de historiador, há qualquer coisa que confere um norte perfeito a este ensaio muito pessoal de David; o autor vaga e divaga de cá para lá, passando de antropólogos para romancistas, circulando por leituras informativas e experiências de viagem (aqui e ali surge um “eu mesmo vi”), mas nunca esta miscelânea toda se desmancha, como ocorria facilmente em seus romances. As histórias do mundo são mesmo uma história do mundo em Uma história do mundo.

Talvez seja bem esta atitude jornalística de historiador do cotidiano diante de um cotidiano que já não existe (o cotidiano muito antigo que já parece ficção) que radicaliza a forma histórica de Uma história do mundo. Munindo-se o mais das vezes de um humor anedótico para certas grandes questões históricas, isto não significa que David perca seu senso de concentração crítica e reflexiva. “Foi no Egito que Napoleão descobriu que era um marido traído” começa um capítulo cujo chamarisco romanesco são as estripulias conjugais e extraconjugais napoleônicas; mas é este capítulo que vai dissertar sobre um dos assuntos mais complexos do Antigo Egito, a descoberta da escrita egípcia pelo sábio Champollion: “Champollion, aos poucos, foi desvendando a charada. Cada sentença hieroglífica é inserida em um retângulo elíptico. O que está dentro é lido de cima para baixo, mas a ordem dos retângulos pode ser da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda. O leitor se orienta pela posição das figuras, que estão sempre voltadas para o começo da frase.”

Assim, Uma história do mundo apresenta-se a um universo de leitores; vai encontrar o leitor habitual de hoje, que identifica no texto de David o cronista das alcovas de ontem (Napoleão) e hoje (o jogador de futebol Renato Portalupi), e o leitor mais sofisticado, pós-machadiano, pós-proustiano, em busca do tempo, no túmulo do faraó ou de Brás Cubas. Ou talvez estas duas categorias de leitor se fundam num só indivíduo, que curte o prazer de ler. É em nome deste prazer de ler que se vai aguardar os próximos volumes desta empreitada despretensiosamente pretensiosa do neo-historiador David Coimbra.

 

P.S. 1: Inevitavelmente, foi na sessão de autógrafos de David Coimbra na Feira do Livro que topei com uma simpática garotinha, não propriamente bonita ou escultural, mas simpática, e principalmente jovem, com jeito de universitária. Ela, como eu, um cinquentão, estava caçando o autógrafo do escritor. Pediu-me que batesse uma foto dela com David; foi o que fiz, munido com o celular dela. Uma menininha na fila de autógrafos de David Coimbra é o que se espera. Os mortais aproveitamos a rebarba.

 

P.S. 2: Aqui vai uma percepção pessoal e também vaga. A estrutura narrativa de curiosidade intelectual lembra os elementos estruturais de História da literatura ocidental (1959), de Otto Maria Carpeaux. É claro que em termos de linguagem usada por Coimbra (um humor jornalístico brasileiro contemporâneo, onde os chamados vocábulos raros e raciocínios mais dificultosos são espalhados moderadamente no texto, para não espantar o público) e a usada por Carpeaux (um esteta europeu no berço esplêndido brasileiro) as coisas diferem tanto que estas características parecem apagar-se na superfície. Mas vale a pena ter à mão um microscópio crítico e tentar ver estas insistentes semelhanças, assim como David aponta identidades de objetivo entre o romancista francês Marcel Proust e o arqueólogo inglês Howard Carter. “Ao sentir o sabor de uma madeleine amolecida pelo chá quente, Proust sentiu o sabor do passado. Um objeto inanimado, um pequeno biscoito, foi o suficiente para desencadear todo um  processo de recuperação do tempo perdido. Como se Proust fosse um arqueólogo, porque é precisamente isso que o arqueólogo faz: busca nos objetos o tempo perdido.” Nas estruturas assemelhadas dos livros de David e de Otto algo chama bem a atenção, pelo paradoxo em que se encerra: a grandiloquência despojada ou um desejo necessariamente megalomaníaco executado com precisa e estudada simplicidade.

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