Querida Colette
Por seus aspectos ligados ao sexo, sempre tratados com profundidade, sensibilidade e senso narrativo, os textos de Colette, no imaginario literario, foram confundidos com a pornografia
Colette, a escritora francesa, é um nome que mexe com o imaginário de qualquer leitor, ainda que não a tenha lido. Ela é uma irreverência estética; suas observações sobre a conduta sexual da mulher, mais ainda na época em que escreveu seus livros, naturalmente se converteriam em peças literárias de escândalo. A própria vida dela parece “reproduzir” em boa parte as contestações que veríamos em suas narrativas. Sidonie-Gabrielle Colette nasceu em Saint-Sauveur-en-Paisage, em 28.01.1873; faleceu em Paris em 03.08.1954, aos 81 anos. Casou-se em 1893 com o escritor Henry Gauthier-Villars (1859-1931), cujo codinome é Willy; dele separou-se em 1924. Os trabalhos iniciais de Colette foram publicados com o pseudônimo de Willy, o marido; segundo ela própria, ela não se teria tornado escritora se não fosse Willy. Estes fatos, que atrelaram o gênio de Colette à figura de um homem hoje mais obscuro que ela, revelam a dificuldade dum talento feminino, ainda que extraordinário, ascender no universo patriarcal, especialmente naqueles anos em que despontou a literatura da grande ficcionista. Depois de Willy, Colette colecionou divórcios e relações afetivas atrevidas.
Por seus aspectos ligados ao sexo, sempre tratados com profundidade, sensibilidade e senso narrativo, os textos de Colette, no imaginário literário, foram confundidos com a pornografia. O que há na verdade é irreverência e despudor. Chéri (1920) é um romance que vai apanhando o leitor como quem não quer nada, começa um pouco como uma brincadeira quase infantil, até enredar-nos na emoção mais aguda duma leitura; as frases objetivas e precisas de Colette têm lugar único no mundo das palavras e, quase sem querer, constroem um processo de sedução que desliza dentro da caracterização de alguns vocábulos específicos que encaminham o mundo carnal para certos liames do pensamento mais refinadamente devastado.
O que está em cena em Chéri é a relação entre uma quarentona, cortesã aposentada, e um adolescente que descobre o mundo, o sexo, a mulher, a paixão. “À quarante-neuf ans, Léonie Vallon, dite Léa de Lonval, finissait une carrière heureuse de courtisane bien rentée, et de bonne fille à qui la vie a épargné les catastrophes flateurs et les chagrins.” Depois de construir sua renda como uma “femme entretenue” de alta roda, Léa, na maturidade, se entrega a seu hedonismo: a atração natural de um indivíduo maduro, uma mulher no pico antes do declínio, por um corpo mais jovem, alguém em suas primeiras manifestações de Eros. Chéri, o objeto de desejo de Léa, ainda tem algo da infância, saltam de suas orações o cheiro de fraldas. Quem diz a frase que abre o romance é Chéri, e se parece com o tom obsessivo dum infante; é um desejo em si, um desejo que a narradora infantiliza, ironicamente. “—Léa! Donne-le-moi, ton collier de perles! Tu m’entends, Léa? Donne-moi ton collier!” Chéri brinca, em suas mãos, com o colar de sua amante madurona, e o deseja para si, como um capricho. Léa segue em silêncio: parece não ligar para a infantilização de Chéri. “Aucune réponse ne vint du grand lit de fer forgé et de cuivre ciselé, que brillait dans l’ombre comme une armure.” No primeiro plano, Chéri; um segundo plano de Léa.
Um dos dados da trama é que Léa é companheira de lides de outra cortesã, também desativada, Madame Peloux, mãe de Chéri. Charlotte Peloux, a mãe, favorece a relação de Chéri com Léa como um aprendizado sexual e emocional do filho, mas depois o encaminha ao casamento com Edmée, uma jovem da alta classe. O casamento de Chéri decreta o afastamento de Léa, que sai da cidade. Ao longo do livro, Chéri é Chéri para sua amante, para sua mãe, somente a esposa, Edmée, o chama pelo nome de batismo, Fred. As relações de Léa e Chéri subvertem os pontos-de-vista das relações entre um homem e uma mulher, historicamente; somente uma mulher poderia expô-las com autenticidade, somente Colette saberia dar-lhes esta densidade na superfície das ações de aparência erótica.
Léa, para Chéri, é a mulher inesquecível. Os problemas do casamento de Chéri assomam quando os pensamentos na Léa ausente se agudizam. Há uma separação entre Chéri e Edmée. Léa, diante de sua empregada, exulta: “—Rose, Rose! Chéri... Monsieur Peloux a fichu le camp! Il a laissé sa femme!” Se Chéri abandonou o campo, Léa vai a campo. Léa e Chéri se reencontram. No entanto, a emoção inicial, trêmula e profunda, se esvai diante das diferenças entre os dois. É Léa quem o manda embora, notando o que ele, ainda imaturo, tem dificuldade de enxergar.
Se o parágrafo que introduz a cena romanesca tem algo de sapecagem infantil, o parágrafo final traz a melancolia das constatações amadurecidas. “Chéri reprit son chemin vers la rue, ouvrit la grille et sortit. Sur le trottoir il boutonna son pardessus pour cacher son linge de la veille. Léa laissa retomber le rideau. Mais elle eut encore le temps de voir que Chéri levait la tête vers le ciel printanier et les marroniers chargés de fleurs, et qu’en marchant il gonflait d’air sa poitrine, comme un evadé.” Evadido do amor de sua vida, por diferenças inconciliáveis na prática, Chéri vai seguir seu caminho como um evadido; a cortina caiu porque Léa a deixou cair, e a natureza, florida e primaveril, contrasta com o peso no peito da paixão impossível entre Léa e Chéri.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br