O Cinema Essencial de Prates Correia

Prates Correia fez poucos filmes, todos tiveram suas dificuldades de compreensao e degustacao por parte de plateias que iam ao cinema em sua epoca

15/09/2024 01:59 Por Eron Duarte Fagundes
O Cinema Essencial de Prates Correia

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Carlos Alberto Prates Correia faleceu em 28 de maio de 2023, no Rio de Janeiro, aos 82 anos. Cineasta brasileiro, nascido na cidade de Montes Claros, Minas Gerais, Prates Correia fez poucos filmes, todos tiveram suas dificuldades de compreensão e degustação por parte de plateias que iam ao cinema em sua época. Embora seja tão grande quantos os melhores diretores de cinema produzidos no Brasil, ainda hoje seu cinema parece ser citado com distanciamento e frieza pelos historiadores. Entre a metade dos anos 70 e a metade dos anos 80, o realizador rodou seus principais filmes: Perdida (1976), Cabaret mineiro (1980) e Noites do sertão (1983).

PERDIDA

Perdida é seu trabalho mais corrosivo; nele se trata duma mulher brasileira perdida na estrada do país. É um retrato angustiado da realidade brasileira de então, com o cheiro da década de 70 escorrendo pelas imagens; no entanto este perfume de época, visto hoje, se alastra intemporalmente. Estela, a empregada doméstica que pelas mãos de um gigolô se converte na prostituta Janete, é um pouco o que fomos, o que somos. A intérprete Maria Sílvia entrega aqui um desempenho desglamurizado e autêntico para conduzir a consciência narrativa: rumo do desespero que é tão existencial quanto nacional.

É curioso o exercício estético de Prates Correia em Perdida. Ele não deixa de se valer de ambientes e situações comuns às pornochanchadas que naqueles anos dominavam o cinema brasileiro, com sua abundância de sexo trivial e grosseiro misturados com provocações à família e à moral vigente. Na cena de abertura de Perdida a família patronal de machos abusa do corpo de Estela, sob o olhar entre divertido e complacente e sarcástico da patroa, uma mulher de família. Mas o uso que o refinamento de Prates Correia faz desta vulgaridade pornográfica não leva às facilidades de encenação dos guetos de caverna onde os diretores comerciais faziam suas sacanagens. Prates Correia, em Perdida, adultera nosso habitual olhar cinematográfico: daí ele exigir-nos mais, cutucar nosso lado conformista ou passivo de espectador.

Nas imagens que acompanham os créditos iniciais, vemos a personagem de Maria Sílvia à janela dum ônibus. Nas imagens finais Estela/Janete está novamente à janela dum ônibus: desta vez saindo de sua opressão interiorana, primeiro numa casa burguesa, depois num prostíbulo (“Eu vou virar rapariga?” diz ela, espantada ou ingênua, a seu gigolô quando ele anuncia que a vai deixar na zona, porque tem que viajar), Estela parte para a capital, para Belo Horizonte, em busca duma libertação ainda longe e incógnita.

Perdida parece assemelhar-se à trajetória da protagonista de Iracema, uma transa amazônica (1975-1980), de Orlando Senna e Jorge Bodansky, e o vilipêndio social e macho. Ou parecer-se com a duplicidade ou ambiguidade da criatura de O homem que virou suco (1900), de João Batista de Andrade. Diálogos do cinema brasileiro de então.

CABARET MINEIRO

Cabaret mineiro (1980) venceu o Festival de Cinema Brasileiro de Gramado de 1981: melhor filme, melhor fotografia (Murilo Salles), melhor ator (Nelson Dantas), melhor montagem, melhor direção, melhor trilha sonora (Tavinho Moura), melhor atriz coadjuvante (Tânia Alves). Surpreendeu a muitos que esperavam que as facilidades comerciais de Eu te amo (1981), de Arnaldo Jabor, seriam recompensadas e não as exacerbações formais e inquietações estéticas de Cabaret mineiro. Não me lembro quem eram os jurados do Festival naquele ano: mas certamente eram cérebros fílmicos que acompanhavam o além da linha do cinema de Prates Correia. Além da linha que encontra em Cabaret mineiro seu ponto mais radical.

Inspirado em textos de Carlos Drummond de Andrade e de João Guimarães Rosa, mas adotando um processo livre de referências e citações ao modo duma colagem pictórica ou musical-pictórica, Cabaret mineiro traz como centro da consciência narrativa a personagem libertina e móvel de Nelson Dantas (lembrando que em Perdida é Maria Sílvia quem conduz este ritmo interior). Sua criatura transita entre belas e desejáveis mulheres. Há Tamara Taxman, de cuja marca cênica o espectador já se tinha esquecido; mas seu viés de olhar e corpo é praticamente único no cinema brasileiro, em Cabaret mineiro, ainda que em aparições esporádicas. E Tânia Alves deslumbra quando surge, dançando e cantando, num pequeno palco de teatro, quase uma caverna, um vaudeville mineiro. Como em Perdida, Cabaret mineiro não rejeita cenas ousadas de sexo e vai mais além no uso de palavrões, um monólogo poético de Dantas recheado dos ditos termos chulos para situações sexuais. Entre Perdida e Cabaret mineiro o trem estilístico propõe um desequilíbrio formal: Cabaret mineiro desmonta inteiramente o que ainda havia de linear na corrosão de Perdida. Poucos (os jurados do Festival de Gramado de 81 foram a exceção) compreenderam esta aventura de filmar do gênio de Prates Correia.

No entanto, Cabaret mineiro repete parte duma situação e diálogo que havia em Perdida dentro dum bordel: duas mulheres em que uma ensina à outra, a que ensina faz de homem e diz à outra que há “uma posição que quase ninguém conhece”. A cena de Perdida é mais longa; a de Cabaret mineiro parece um resumo, ou uma citação ao filme anterior do cineasta.

Citação. Ao futebol. À Copa do Mundo de 1978, na Argentina. Numa narração-off, ouve-se a transmissão da partida entre Argentina e Peru, naquela Copa, com a famosa e polêmica goleada que levou a Argentina à final pelo saldo de gols. As imagens coladas à narrativa-off mostram as personagens em situações variadas, provavelmente assistindo ao jogo pela televisão.

Nelson Dantas recita: “troco a musa do arrebol pela dor do futebol”. Assim é Cabaret mineiro: um rosário sensorial de filmar.

NOITES DO SERTÃO

Talvez Noites do sertão (1983) seja o mais elegante dos filmes de Prates Correia. O mais literário: tudo feito com seu senso cinematográfico imbatível. E com o olhar travesso de um artista mineiro. A inspiração para esta filmagem de densidade poética foi a novela Buriti, de João Guimarães Rosa, incluída no livro Corpo de baile (1956). É o filme que mergulhou o cinema de Prates Correia no sertão mineiro, seus cenários desolados, seus vales misteriosos. O sertão: que já se anunciava nos aspectos interioranos de Perdida e no universo de cabaré remoto de Cabaret mineiro. O sertão estava dentro de Prates Correia; o artista, o indivíduo. Sua leitura cinematográfica de Guimarães Rosa levava naturalmente a este reencontro ancestral: com a mesma liberdade de referências que havia em Cabaret mineiro, uma recomposição poemática em imagens de Drummond e Rosa.

Menos visceral que Perdida, menos experimental que Cabaret mineiro, Noites do sertão reedita a criatividade de Prates Correia. E sua absoluta fuga às concessões comuns no cinema. Recitativo, o filme refaz a colagem do texto de Rosa; a beleza formal de Noites do sertão amiúde transcende.

Tomando certas liberdades para recriar no roteiro o texto de Rosa, procurando seguir a sintaxe esquisita e sincopada do escritor, entre a metáfora, o delírio e os signos do sertão real, Noites do sertão é uma peça à parte dentro do cinema brasileiro que partiu da literatura. O sexo ainda faz das suas aqui, mas sem utilizar o deboche mais rasteiro das cenas do bordel em Perdida ou do cabaré de Cabaret mineiro. Até certo ponto: porque, como bom mineiro, Prates Correia ainda zomba. Mas o sexo em Noites do sertão vai adotando uma outra poesia, já se afastando da atmosfera dos anos 70. Quem conduz o liame da mente narrativa de Noites do sertão é a personagem da atriz Débora Bloch. Em determinado momento ela dança com rara sensualidade. Prates Correia, em outro instante, nos oferece um travelling pelo corpo nu da intérprete, deitada de lado na cama, com a câmara fechando-se com planos do olhar de Débora que se volta para a câmara como olhando para o observador. O amor entre mulheres está ali: uma cena de sexo entre as criaturas de Cristina Aché e Débora Bloch tem uma suavidade que contrasta com a lembrança que temos das mulheres que transam como se uma delas fosse o homem em Perdida. A figura interpretada pelo ator Carlos Kroeber é o segundo elemento condutor da consciência narrativa do sertão. E uma presença, precisa e marcante, como ator do cantor Milton Nascimento evoca os aspectos de musicalidade do cinema de Prates Correia, sempre musicado por Tavinho Moura, cujo ápice neste aspecto foi em Cabaret mineiro, uma espécie de musical à brasileira, como Eu te amo, mas a anos-luz no processo criativo.

Na época, um dos espantos era a inexpressividade do ator televisivo Tony Ramos. Tony está longe de ser um grande ator, apesar de consagrado na televisão; melhorou um pouco na maturidade. Ao dizer o texto de Rosa/Prates Correia em Noites do sertão, Tony faz com que o artifício formal de excitação elaborada se perca muito em sua busca de densidade, desequilibra-se no confronto interpretativo com os demais, porém a mestria de filmar do realizador oculta em parte estas que seriam quedas estéticas. Revisto hoje, estas debilidades de Tony não parecem atrapalhar o processo de criação de Noites do sertão.

Montes Claros

A explicação das poucas alusões fortes do cinema de Prates Correia se prende muito à sua predisposição estética, que foge, estilisticamente, à vulgaridade nacional; não temos alma para o acompanhar nesta senda. Carlos Alberto Prates Correia nasceu em 1941 em Montes Claros, mesma cidade mineira onde em 1906 nasceu o escritor Cyro dos Anjos, outra vítima cujo estilo é incompreendido pelo interesse brasileiro. Como espectador e leitor, teço a imaginação duma adaptação para o cinema do romance O amanuense Belmiro (1937) feita por Prates Correia. Minha imaginação à beira dos túmulos de Cyro e Carlos Alberto.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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