O Peru Essencial em Torno da Catedral de Llosa
A ambição de romancista de Mario Vargas Llosa se dá inteira em Conversa na Catedral
A ambição de romancista de Mario Vargas Llosa se dá inteira em Conversa na catedral (Conversación en la catedral; 1969), um romance latino-americano capital do século XX. Ele começa com uma epígrafe em que cita Balzac; na citação Balzac afirma que um verdadeiro romancista deve passar em revista toda a vida social, pois o romance é a história privada das nações. Com Conversa na catedral Llosa quis pôr todo o seu Peru natal. Como Balzac, pois sim. Como Proust em seu romance-rio queria caracterizar o essencial da França. Se para Proust foi importante durante muito tempo deitar-se cedo, Llosa vaio surpreender sua personagem, o jornalista Santiago, à porta do jornal, contemplando uma grande avenida urbana, no momento em que ocorre uma pergunta (o famigerado discurso indireto livre, que Llosa hauriu em seu mestre Flaubert e o transformou complexamente). “Em que momento o Peru tinha se fodido?” É uma questão bem sul-americana, portanto muito brasileira: uma foda global do país. Não uma foda que dá prazer, mas uma foda que resulta do estupro: dolorida, indesejada. Como aquela mulher que, após anos de casamento, quer separar-se e topa barreiras na ação do marido, perguntando-se: “Afinal, o que ele quer? Quer foder comigo?” Depois de anos de boa foda, um outro sentido do verbo foder: atrapalhar, ralar. Enfim, o Peru.
“Da porta de La Crónica Santiago olha a Avenida Tacna sem amor: automóveis, edifícios irregulares e desbotados, esqueletos de anúncios flutuando na neblina, o meio-dia cinzento. Em que momento o Peru tinha se fodido?”
O romance de Llosa acompanha os movimentos sociais e políticos do século XX pelos olhos duma espécie de repórter de sua época, o jornalista Santiago, que todavia tem veleidades literárias. Ele ouve de alguns interlocutores: “É preciso ser louco para ir trabalhar num jornal quando se tem algum amor pela literatura.” “O jornalismo não é uma vocação mas uma frustração, você verá.” Mesmo assim, Santiago não se desgarra do jornalismo, até seus últimos dias, até as últimas páginas, quando em balanço da vida anota, “ trabalharia aqui e acolá, talvez qualquer dia houvesse outro surto de raiva e ele seria chamado na hora de morrer, não era menino?” É como aquele proustiano todas as épocas da vida incrustadas num lugar chamado Tempo, o fecho de tudo. Llosa, como se vê, é ambicioso, pretensioso; mas é grande; e expõe, em vários partes de seu romance, e com sarcasmo imbatível, os conflitos vividos pelo olho jornalístico aspirante a literato: o efêmero que se esfumaça e o eterno artístico que parece etéreo demais, esfumaçando-se no fim também.
“Tinha começado numa daquelas noites brancas e estúpidas que, por uma espécie de milagre, se transformou em festa.” Um romance começa assim: vendo o cotidiano duma metrópole, tediosamente, fodido mesmo, e a festa das palavras de Llosa opera o milagre da literatura, agiganta tudo o que parece pequeno e sem graça. Os resmungos de Llosa contra o jornalismo são paradoxais, mas sem a influência duma espécie de imprensa dos anos 60 Conversa na catedral talvez não existisse, não assim pelo menos. E perderíamos este seu deleite revolucionário, onde Flaubert conversa calmamente com Proust.
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br