"Que Me Aconteceu?"

Kafka: Sua literatura passa-se nas sombras

26/11/2024 20:03 Por Eron Duarte Fagundes

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Marcel Proust inventou a memória tal como a conhecemos hoje. James Joyce esticou as cordas da linguagem. Franz Kafka pôs o absurdo de nosso de nosso cotidiano: da burocracia às relações familiares. Esses três nomes eram tão sacrossantos para quem se debruçasse sobre literatura na primeira metade do século XX que chegou a irritar quem quisesse dedicar-se a escrever naqueles anos: há outros caminhos fora de plagiá-los, lembrava-se.

Kafka, por exemplo, é o próprio absurdo encenado em palavras. Era tcheco, escreveu em alemão, não disse coisa com coisa de sua era bélica e judaica mas por símbolos a realidade aflora de suas páginas. A metamorfose (1915) caracteriza esta relação entre o fato-símbolo e o real que significa.

“—Que me aconteceu?”

É a pergunta que se faz, lá no início, Gregório Samsa ao acordar feito um monstruoso inseto. A narrativa se dá em terceira pessoa, mas é um pouco como se o narrador fosse Gregório, que é a sombra-símbolo do próprio Kafka. Um autor que se vê como um inseto: um inútil, um rejeitado. A metamorfose é este estudo: o fenômeno do indivíduo rejeitado, por esquisito, algo que recrudesceu ao longo do século XX e neste século XXI é uma autêntica epidemia mental. A rejeição de Gregório começa na família, no pai, na irmã, na mãe. “A mãe —que, apesar da presença do gerente estava ali despenteada, com o cabelo enredado no alto da cabeça — olhou primeiro para Gregório, juntando as mãos, avançou depois dois passos para ele, e desmaiou por fim, em meio de suas saias espalhadas ao seu redor, com o rosto escondido nas profundezas do peito. O pai avançou com o punho, com expressão hostil, como se quisesse empurrar Gregório para o interior do quarto; voltou-se depois, saindo com passo incerto para a antessala, e, cobrindo os olhos com as mãos, pôs-se a chorar de tal modo que o pranto lhe sacudia o robusto peito.”

Transformado num inseto, provocando o asco nos seus, Gregório se encaminha para seu fim. Sua morte tem na pena de Kafka uma melancolia discreta, feita do rigor das palavras que o despojamento quase oculta. “E, em tal estado de aprazível meditação e insensibilidade, permaneceu até que o relógio da igreja deu as três horas da madrugada. Ainda pôde viver aquele começo de madrugada que despontava por trás das vidraças. Depois, contra sua vontade, sua cabeça tombou por completo, e seu focinho despediu debilmente seu último alento.”

Ao contrário do que aparenta a aparente objetividade de sua linguagem, Kafka é um dos ficcionistas mais secretos, mais abstratos, mais subjetivos. Sua literatura passa-se nas sombras; e sabemos que as sombras escondem, e uma metamorfose não é somente uma metamorfose.

 

(Em 1915 o ficcionista tcheco Franz Kafka escreveu A metamorfose. A frase inicial determina o assunto, o desenvolvimento, a própria reflexão narrativa. “Quando, certa manhã, Gregório Samsa despertou, depois de um sono intranquilo, achou-se em sua cama convertido em um monstruoso inseto.” No alvorecer do século XX, Kafka antecipava o fenômeno da rejeição: vemos uns aos outros como insetos e nos rejeitamos; rejeitando-nos, procedemos à humilhação do outro; e assim, como nesta novela, se passou o século XX: insetos, rejeição, humilhados, um grupo muito grande de seres humanos. Mais de cem anos depois, em 2023, o francês Michel Houellebecq escreveu seu novo romance, Aniquilar, e ataca assim em sua frase de abertura: “Em algumas segundas-feiras de final de novembro ou início de dezembro, especialmente sendo solteiro, você tem a sensação de estar no corredor da morte. As férias de verão já acabaram há muito tempo, o Ano-Novo ainda está longe; a proximidade do nada é enorme.” Houellebecq, como introdução do século XXI, fala do desespero e da solidão, do paradoxo duma época em que, dispondo de tantos meios de comunicação sob a informática, nunca como agora houve uma quantidade tão grande de solitários à borda do desespero. Teria a rejeição entre os seres humanos, cujo recrudescimento se teria dado ao longo do século XX, vindo a ter nesta forma exasperada de solidão que acontece amiúde no século XXI? Talvez Kafka explique Houellebecq.)

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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