Amor no Feminino

Amora (2016), um livro de contos, foi a obra que catapultou o nome da escritora Natalia Borges Polesso do circulo de autores da serra gaucha

13/12/2024 03:24 Por Eron Duarte Fagundes
Amor no Feminino

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Amora (2016), um livro de contos, foi a obra que catapultou o nome da escritora Natalia Borges Polesso do círculo de autores da serra gaúcha (reunidos, por exemplo, na livraria Do Arco da Velha em Caxias do Sul) para um prestígio nacional, hoje consolidado; embora prêmios pouco ou nada tenham a ver com a excelência literária, foi o Jabuti ganho pelo livro que transformou a visibilidade da arte de Natalia. Na reedição de 2022, Natalia confessa: “Amora transformou minha vida.” Toda a beleza da escrita, e suas inquietações, que o leitor viria a deparar em romances como Controle (2019), A extinção das abelhas (2021) ou numa novela como Foi um péssimo dia (2023), já estão neste conjunto de contos em que as narradoras criadas por Natalia constroem um ritmo bastante particular e preciso onde as divagações para cá e para lá parecem sutilmente coordenadas por uma espécie de relógio de palavras.

Na introdução, a escritora Conceição Evaristo, talvez o principal nome literário do Brasil de hoje, identifica no título do livro um nome inventado, o feminino do amor: amora. Mas Conceição também evoca a fruta amora, de “caminhos suculentos ora doces, ora ácidos”, tais como as narrativas de Natalia, que são belas e exacerbantes. Embora Natalia tenha escrito seus contos de maneira independente, em épocas às vezes distantes entre si, ao ler Amora, o leitor encontra uma unidade estética que faz do livro como um todo, ele mesmo, um ponto alto da atual literatura brasileira.

Mas cada observador pode deter-se neste ou naquele conto que diga mais a seu espírito, à sua visão da literatura ou do mundo.

Os demônios de Renfield traz imagens literárias cuja impressividade produz uma personagem de grande força, Débora. “Débora está pendurada por uma corda de sisal grossa com as pontas revestidas em couro cru que descem de dois ganchos presos no teto.” A magia literária se vai produzindo impetuosamente no texto de Natalia. “É noite. O sangue nas mãos de Débora está seco. Sexta 13, 23 horas. Lava as mãos e sai. Desce a rua do parque, passa pelas árvores. Está escuro. Débora não sente medo, não sente nada. Encontra uma fila com gente grotesca e se dá conta de que chegou. Esqueletos luminosos, monstros, odaliscas pálidas, bruxas, bailarinas mórbidas, diabos, drags. Sobe as escadas. Compra uma bebida. As luzes intermitentes fazem Débora pensar que um daqueles comprimidos de cartela agora seria o paraíso. Super-heróis rasgados, múmias, zumbis desmembrados, mascaradas. Débora se move. Na verdade dança.” A tentação de seguir reproduzindo aqui a beleza deste conto é grande; há ali uma sensibilidade de difícil apreensão, em sua totalidade, por quem se dispõe a pensar no que leu: algo complexo em literatura, que é atingir o sensorial da palavra, como em Clarice Lispector, mas sem ser Clarice Lispector. “Débora está amarrada. Vanessa encontra sua artéria. Ela pulsa em descompasso. Débora ensaia um grito. E cala. Vanessa morde, suga, engole, morde, suga, cospe os demônios.” Sou acompanhado por esses demônios.

Ou então este Inventário da despedida: um conto em quatro distâncias. Desde a primeira distância: “Eu te conheço desde que o mundo era o som da distância que nos separava, mas nunca nos impedia encontros. Eu te conheço desde sempre, desde o medo primeiro de conhecer. Eu te conheço antes da vontade. Eu te conheço no desconhecimento dos estranhos. E desde então, principia, todas as horas, a vontade de tocar nas coisas que são íntimas, incorpóreas, meio efêmeras — porque acabam mas não findam.” Em que universo estamos? Por que tais palavras suspendem a respiração do leitor que aqui está? “Eu juro que é tudo substância-verdade.” Porque um inventário da despedida é uma parábola (ao modo de Kafka sem ser Kafka), que é, a parábola, uma metáfora sob forma narrativa ou metafísica.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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