Quem Manda no Brasil?

Faoro ataca a questao do Estado brasileiro com furia, se refere ao capitalismo dirigido pelo Estado

08/11/2024 03:52 Por Eron Duarte Fagundes
Quem Manda no Brasil?

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Raymundo Faoro é um dos pensadores-chave do Brasil. Ele pertenceu a uma geração (Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Prado ou mesmo Viana Moog), ou a um mundo, em que o que mais importava era estabelecer uma visão ampla da sociedade. Em Os donos do poder; formação do patronato político brasileiro (1958-1975) o ensaísta de longo fôlego pretende responder a uma pergunta essencial: quem manda no Brasil? E a resposta que nos dá Faoro está recheada de pequenas travessuras de interpretação histórica, misturando nossas origens ibéricas com a burocracia brasileira ascendente e dominante entre os anos 50 e 70.

“A Península Ibérica formou, plasmou e constituiu a sociedade sob o império da guerra”, assevera-nos o autor, valendo-se duma tríade pleonástica de verbos. As relações bélicas (naturalmente de feição geopolítica) são logo adiante observadas de um lado de relações autoritárias, talvez a base duma burocracia estatal que se impõe à sociedade. Vai a ecos distantes, para chegar à atualidade, o passado como metáfora. “O rei, na verdade, era o senhor de tudo — tudo hauria dele a legitimidade para existir—, como expressão de sua autoridade incontestável, bebida vorazmente da tradição visigótica e do sistema militar.”

Faoro faz a crítica do Estado brasileiro como formado por um grupo privilegiado de burocratas (quase uma seita) que determina como as coisas devem ser na sociedade brasileira. Há um curioso liberalismo na essência do pensamento de Faoro. “Dominante o patrimonialismo, uma ordem burocrática, com o soberano sobreposto ao cidadão, na qualidade de chefe para funcionário, tomará relevo a expressão.” Mas as ideias e os conceitos trazidos, ou elaborados, por Faoro adquirem, na extensão do livro, em sua própria linguagem, que circula por Alexandre Herculano e por Antonio Vieira, um barroquismo amiúde gótico, são demasiado complexos para caber num estereótipo sociológico tão simplório quanto este, comum nos tempos obtusos que correm.

Faoro ataca a questão do Estado brasileiro com fúria, se refere ao capitalismo dirigido pelo Estado, desfaz as meditações de classe (Marx) para se deter no olhar para a casta estatal (à luz de Max Weber). Como um visionário, em que, à maneira do português Herculano, o historiador se mimetiza no literato, Faoro conclui seu livro com o verbo altissonante: “Cobrindo-a, sobre o esqueleto de ar, a túnica rígida do passado inexaurível, pesado, sufocante.” O peso do Estado para a sociedade? Tergiversador, chegando a este século XXI com as estranhezas e idiossincrasias de suas análises, Os donos do poder é uma obra-prima de nosso pensamento subtropical, para deleite e irritação em igual medida.

Como este seu livro básico, Faoro , ao que parece, foi também uma personalidade de inesperados paradoxos. No dia em que Faoro morreu, em 2003, quer dizer, poucos dias depois, numa conversa no restaurante Copacabana, o historiador Décio Freitas confidenciou, a mim e a Juremir Machado da Silva, que ficara (ele, Décio) danado da vida quando, no dia do golpe militar, em 31 de março de 1964, encontrara Faoro em Copacabana comemorando o golpe. Faoro, um liberal, comemorando o Estado autoritário que estava por vir? Ou ignorava que uma certa casta estatal (burguesa, embora Faoro negasse essa essência à classe) estava tomando as rédeas da sociedade? Ou é de ser, nos liames da sutileza do pensamento de Faoro, uma secreta relação com o autoritarismo final?

Faoro sabe, contudo, que a dinâmica histórica é devoradora. Como lê-lo ante os fatos que se sucederam nas décadas posteriores àquela em que ele montou suas teses? Relação dialética entre texto e atualidade do leitor: antropofágica. Diz Faoro: “A história, uma vez aberta ao dinamismo, não contempla atos gratuitos e inconsequentes —ela devora, segundo uma ideia que seria cara a Hegel, homens e instituições.” Por que não devoraria as mais belas teorias? Sem desmanchar o poder do um livro, cujo dono está entre o leitor e o autor.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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